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COTIDIANO

As sobrancelhas do Paulinho da Viola

JB Alencastro especial para o  Diário da Manhã

- Alencastro, tu conheces o Rio de Janeiro?
- Morei aqui quando pequeno, passava as férias de verão em Copacabana.
- Não "mermão", zona sul eu tô cansado, vou te levar para Bonsuça.
- Tá legal, eu aceito o argumento.
Saindo do Fundão, depois de um bom jogo de pólo-aquático, chegamos num animado boteco de esquina, sabiamente escolhido por ter a melhor dobradinha do universo. Sambinha no fundo, mesa de sinuca e aparentemente todos ali se conheciam.
- Bate uma sinuquinha?
- Trama em segredo seus planos. Eu jogo.
Meus amigos aquáticos perdiam de lavada o mata-mata, talvez pela cerveja ou pela excitação do evento, do clima local. O cavaquinho, o violão, o pandeiro e a voz macia ressoava e elogiei - como sempre faço - o autor, Paulinho da Viola, era uma gravação perfeita.
- Não tem playback, é o Paulinho "mermo". Diz aí Paulinho, joga com o goiano?
- Quem usa um relógio assim, tem o meu respeito.
Ali, ao vivo e a cores, de camisa branca, com um taco todo trabalhado, meu ídolo que passou na minha vida e nunca me deixou levar. Arqueou suas enormes e delineadas sobrancelhas, e perguntou-me, sorrindo sereno, parecia um filme em preto e branco.
- Sinuca de verdade ou mata-mata de menino?
- Sinuca, Paulinho. Sinal fechado.
Minha boca até tremeu diante de tamanha intimidade. Mas no taco eu fui firme. Comecei na amarela e depois fui na sete. O bolão correu um pouco e ele sorriu aliviado, sabendo que minha próxima jogada seria defensiva, provavelmente. Também notou com a sutileza dos grandes mestres, que eu não tirava o olho do seu taco.
- Gostou? Eu quem fiz. Se você ganhar eu te dou.
- Trocamos então no relógio. Não haverá mais ilusão.
Minha indignação para comigo mesmo foi aos píncaros da loucura. O relógio dos amigos, que fora do meu pai, eu jamais conseguiria comprar igual novamente. Caprichei na tacada, matei duas bolas seguidas e em vez de empurrar a sete, dei na cara dela.
- Boa matada.
- Obrigado.
Eu que geralmente falo muito, fiquei monossilábico diante do autor e também intérprete de tantas músicas. Começou a cantarolar Lupicínio Rodrigues, fui junto. Perguntou se eu gostava de carros, eu respondi que só dos antigos. Década de cinquenta para trás. Disse que eu jamais poderia ter cinquenta anos e como podia gostar dessas coisas do passado. Respondi dizendo que eu não tenho saudade do que não vi, só sinto falta.
Suas sobrancelhas ficaram tão assimétricas, que pensei que ele havia tido um derrame, ou uma paralisia facial. Sorriu novamente, tão doce que pensei que erraria a bola rosa, não errou. E empurrou suavemente a bola sete. Infelizmente para ele e para minha grande sorte, a mesa apresentava uma discreta descaída nesse canto. Uma sinuca de bico.
- Acho que tu vais levar o taco... hoje à noite tem uma gafieira, lá no centro, vai lá. Tu vais gostar, Alencastro.
O bolão passou por trás, mas não conseguiu atingir seu alvo distante. Impávido, Paulinho me entregou o taco e ainda pediu-me que o usasse sempre que possível. A dobradinha foi servida com a farofa quentinha e ele se uniu ao cavaquinho como se nada tivesse acontecido.
- Ele gostou de ti, Alencastro.
- Eu ainda mais dele.
- Paulinho, que horas é o samba?
- Samba não tem hora, basta você chegar...
E num sorriso iluminado, que tentei retribuir, ele levantou ambas as sobrancelhas, começou a dedilhar o instrumento e cantou.
- Eu sou assim quem quiser gostar de mim, eu sou assim.

(JB Alencastro é médico e poeta)

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