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COTIDIANO

A banalidade do mal

Helvécio Cardoso

De uns tempos para cá, o homicídio vem se tornando crime banal em Goiânia, especialmente, e no Brasil, em geral. Mata-se sem motivo algum. A dogmática do Direito Penal não admite crime sem motivo. Então, para conceituar juridicamente o assassinato desmotivado, diz-se que o motivo é fútil.

A questão conceitual – motivo fútil, ou inexistência de motivo – não muda o fato: a vida humana vai perdendo valor. Com isso, o crime de morte vai ficando cada vez mais banal. Tantos homicídios por motivo fútil já não chocam a opinião pública. Ou, pelo menos, não a escandalizam com a intensidade que a dignidade da vida humana exige.

Os noticiários dos jornais e das TVs estão abarrotados de casos escabrosos. No entanto, tudo virou rotina. Faz parte da paisagem. Alguns casos, apanhados a esmo, dão conta da dimensão do problema. Recentemente a polícia descobriu e prendeu um típico serial killer em Goiânia. Ele matou dezenas de moças que não conhecia, contra quem nada tinha. Nem sequer matou para roubar. Apenas um mórbido prazer de tirar vidas humanas determinou sua conduta.

“Sentimento Demoníaco”

Tiago Henrique Gomes da Rocha, de 26 anos, vigilante profissional, confessou o assassinato de 29 pessoas. Não alegou, sequer em juízo, ter sido coagido a confessar. Ele assume com absoluta serenidade a autoria dessas mortes. Mesmo assim, ainda é qualificado por alguns jornais condescendentes como “suspeito” ou “suposto serial killer”.

Recentemente, ouvido em juízo sobre a morte de Rosene Gualberto, uma de suas vítimas, contou que estava em um bar bebendo e que, depois, não se lembra de mais nada. Mesmo não se lembrando “de mais nada”, admitiu: “fui obrigado a cometer o crime”. Quem ou o quê o obrigou? Respondeu que “uma voz” o manda matar.

Esta voz, que ele chama de “sentimento demoníaco”, o exime de qualquer remorso, ou sentimento de culpa. “Para mim”, confessou, “não era errado matar”. Não tendo qualquer motivação, ainda que insana, para agir, ele escolhia suas vítimas por acaso, matando aleatoriamente. Os advogados de Tiago alegam que ele seria demente, tendo requerido exame de sanidade mental. Os médicos vão avaliar.

A banalidade está em que o criminoso se mantém indiferente ao resultado de seu ato. Além de não sentir remorso, alguns se vangloriam do que fizeram. É o caso de um menor que registrou em vídeo, por meio de um celular, o fuzilamento de um rapaz.

Menores assassinos

Os programas noticiosos de televisão, que atuam na linha do “jornalismo mundo cão”, deram o fato com destaque. Aconteceu em março do ano passado. Um menor de 16 anos, ajudado por comparsas, sequestrou um jovem de 18 anos. Levou-o a uma estrada deserta próxima a Senador Canedo e, lá chegando, matou-o a tiros. Toda a ação foi gravada. A gravação mostra o autor dos disparos zombando da vítima, fazendo pilhéria da situação.

Dias depois, este menor foi detido por policiais que patrulhavam uma praça onde ele fazia manobras radicais com uma motocicleta. Ao examinar o celular do menor, o policial descobriu a gravação do homicídio. Levado a uma repartição policial, o menor confessou, friamente, não apenas o crime cometido em Senador Canedo. Ele também contou que, tempos atrás, matou uma pessoa no Pará, sem explicar o motivo. Confessou também ter matado um outro menor, a facadas, por causa de drogas.

Em abril do ano passado, em Goiânia, uma menina de 15 anos matou a tiros Dione Rosa Nascimento, de 25 anos. A menor em questão, que é lésbica assumida, passeava com sua namorada quando, ao passar por Dione, ouviu chacotas. Ofendida, foi à sua casa, armou-se com um revólver calibre 38, e voltou para tirar satisfação com Dione, que já não estava no local. A menor invadiu a residencia de Dione e, depois de uma discussão, matou-a a tiros.

Um dia antes de completar 18 anos, um rapaz matou a namorada de 14 anos com um tiro no rosto, filmou o crime e o divulgou entre amigos, nas redes sociais. Alegou que não queria mais nada com a moça, como ela insistisse em prosseguir com o relacionamento, o rapaz achou mais prático liquidar a impertinência da moça matando-a. Aconteceu em março do ano passado, no Distrito Federal.

No lugar errado

No último dia 18, uma jovem foi decapitada apenas por estar no local errado na hora errada. Dois rapazes a convidaram para um passeio. No caminho, os rapazes iniciaram uma didcussão boba. Um deles apanhou um facão para matar o outro, que acabou fugindo e se salvando.

Frustrado por não conseguir matar o rapaz, dirigiu sua fúria insana contra a moça, que apenas assistia a briga, sem ter nada a ver com ela. Foi morta e degolada.

A polícia prendeu o matador em flagrante delito. O outro envolvido fugiu. Fotos da cena macabra foram parar na internet.

Filho mata pai

O parricídio é outra modalidade de assassinato que vem se tornando cada vez mais comum. A Internet está cheia desses casos, que vêm ocorrendo em todo território nacional. Trata-se de uma modalidade “clássica” de crime. A mitologia grega noticia que Cronos – Saturno, para os romanos – atentou contra a vida de seu pai, Urano, pelo que foi expulso do céu por seu filho Zeus.

Sófocles faz do parricídio o tema de seu “Édipo Rei”, que Aristóteles, em sua “Poética”, considerou a mais perfeita tragédia de toda a dramaturgia grega. O destino determina que Édipo deverá matar seu pai, Laio, e casar-se com sua mãe, Jocasta. Édipo foge para longe, para escapar de sua sina. Mas o destino astucioso trama para que tudo aconteça como foi predisposto. O destino se cumpriu, afinal.

O tema foi retomado recentemente pela dramaturgia brasileira. Na noval global Império, o protagonista, comendador José Alfredo, é assassinado no último capítulo por seu filho José Pedro. O assassino queria ser o dono da empresa fundada pelo pai. Tem um discreto componente edipiano nesta história, com a figura da mãe se deslocando para a empresa de José Alfredo.

Em suas especulações sobre a origem da culpa, Sigmund Freud atribui a um parricídio o fato fundador da civilização. Este crime primordial, envolvendo disputa dos machos pelas fêmeas da horda primitiva, não é um fato histórico, mas uma hipótese fascinante sobre a formação da mente ocidental e a introdução da repressão, um conceito chave da psicanálise.

Segundo Freud, o desenvolvimento do sentimento de culpa e os mecanismos de repressão engendrado pela cultura, o que torna viável a civilização, deveriam funcionar como freios contra os impulsos destrutivos que levam um filho a matar o pai. Se Freud estiver certo – e talvez esteja – é preciso admitir que, apesar de tudo, os mecanismos repressivos gerados pela civilização são falhos. Em plena era da informática, filho continua matando pai. Quase sempre por nada, ou quase.

Apenas nos primeiros meses deste ano já foram noticiados inúmeros parricídios em todo o País. Em Aratuba, sertão baiano, filho mata pai a pauladas. A vítima chegou em casa de madrugada embriagada e começou a xingar a esposa, daí o filho o ter matado.

Em Santa Vitória, no Triângulo Mineiro, filho adotivo esfaqueia pai de 70 anos e foge. Em Goiânia, Bairro São Francisco, jovem de 19 anos mata o pai, de 40, a golpes de capacete e depois põe fogo na casa. Em Pernambuco, no sertão de Araripina, fotógrafo de 19 anos mata o pai de 40, também fotógrafo, para receber o prêmio de um seguro de vida, estipulado em 400 mil reais.

Em Bela Vista, cidade próxima a Goiânia, um homem mata o pai na rua, corta-lhe a cabeça e a exibe aos transeuntes. Um deles registrou a cena em seu telefone celular. Um programa de televisão deu a reportagem, que foi parar no You Tube, tendo recebido mais de 24 mil cliques até agora.

Ter é mais importante que ser

Esses fatos ainda chocam a delegada titular da Delegacia Especializada de Homicídios de Goiânia, Lúcia Aparecida de Oliveira Silvestre. Mesmo para quem, como ela, lida diariamente com casos de homicídio, a gratuidade com que a maioria deles é cometida causa-lhe indignação. Mas ela, como profissional da repressão ao crime, procura controlar seus sentimentos. “Não podemos deixar que este sentimento (de indignação) tome conta de nós, senão é impossível realizar o nosso trabalho investigativo”, afirma.

Lúcia estima que pelo menos 90% dos homicídios praticados, atualmente, estão relacionados ao tráfico de drogas ilícitas. A etiologia da criminalidade violenta é problemática. Não existe uma única causa eficiente do fenômeno, mas, sim, um complexo de causas. Além das causas socioeconômicas que já viraram lugar comum, existem ainda as de natureza cultural.

“Os pais estão negligenciando a educação dos filhos”, aponta a delegada. Ela observa que vem ocorrendo uma gradual inversão de papéis. Os pais, atualmente, têm receio de exercer sua autoridade, querem agradar os filhos e acabam se deixando manípular por eles. Não impõem limites, cedem aos caprichos infantis e  não conseguem transmitir aqueles valores éticos e morais que poderiam alimentar uma cultura de paz.

“Ocorre nas famílias de baixa renda os pais terem que trabalhar e deixar os filhos sozinhos”, observa. Com isso, as crianças fica expostas às mais nocivas influências. Além do fascínio pela violência, a nova geração vai se deixando seduzir pelo consumismo desenfreado. O filósofo e crítico social Herbert Marcuse, que estudou a fundo a cultura da sociedade industrial, estabeleceu o conceito de “necessidade artificial”, o mecanismo psicológico, uma compulsão neurótica, que retroalimenta o sistema capitalista de produção de mercadorias. Ninguém vai morrer por não possuir um telefone celular do último tipo, mas existem pessoas que acham que suas vidas não terão sentido se não puderem adquirir uma dessas engenhocas – e estão dispostas a matar para ter uma delas.

O subproduto do consumismo, observa a delegada, é a geração de uma cultura de desrespeito pela vida humana. Ultrapassada a linha divisória entre o certo e o errado, essa cultura leva os desajustados à ação homicida. Governados apenas pelo que o filósofo alemão Hegel denominou de “lei do coração” – a conveniência pessoal, em conflito com o resto do mundo, erigida em lei universal – certos indivíduos passam a matar simplesmente porque acha que isso não é errado.

A delegada é crítica também em relação às mídias. “Os meios de comunicação são um fator preponderante da formação das pessoas”, pontifica. Ela acha que a imprensa, que deveria ter uma função educativa, às vezes exagera, sobretudo quando difunde o pânico e gera mais medo nas pessoas. O sensacionalismo acaba, muitas vezes, jogando a favor da violência, não contra ela. “Sou daquelas pessoas que entendem que o homem de bem precisa de paz para viver”, afirma. Segurança pública é  esta paz que nasce da ausência do medo. Então, o que fazer? Não existem respostas definitivas. Sempre haverá os apavorados ingênuos propondo soluções simplistas. Mas a sociedade, de modo geral, começa a exigir certas providências com um angustiante sendo de urgência. O debate cada vez mais apaixonado sobre a redução da maioridade penal é um bom exemplo disso.

Em face de um quadro sociocultural em que menores estão se tornando cada vez mais violentos, e matando tanto quanto os adultos, muitos já começam a defender a redução da maioridade penal. Nas últimas eleições, muitos candidatos se elegeram deputados à Câmara Federal defendendo a medida.

Deixando de lado as alegações falaciosas de um lado e outro, existem argumentos de qualidade a favor e contra a redução da maioridade. A delegada Vera Lúcia é favorável à redução da maioridade penal. Sua argumentação é de natureza jurídico-filosófica.

Ela nota, em resumo, que a imputabilidade penal – que é a qualidade jurídica que tem o indivíduo de responder em juízo por seus atos – tem seu fundamento na capacidade que tem o agente de compreender o caráter ilícito da sua conduta. Esta compreensão nada tem a ver com o conhecimento técnico da legislação. Ninguém precisa conhecer o Código Penal para saber que matar é errado. Esta é uma noção que nos é transmitida pela cultura: a família, a igreja, a escola, a própria rua. Na sociedade que vivemos, qualquer adolescente de 16 anos, ou menos, tem uma clara compreensão de que matar é errado, é pecado, é imoral – é crime.

Somente por uma absurda aplicação da lógica formal se pode admitir que um jovem que vai completar 18 anos no dia seguinte, como o de Brasília, que matou a namorada impertinente, somente neste dia poderá compreender o caráter ilícito de sua conduta. Mas há quem acredite nisso.

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