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COTIDIANO

O que não tem governo nem nunca terá

Jackeline Osório,Da Editoria de Cidades

Matupá, Mato Grosso, 1990. Três assaltantes de banco foram descobertos e perseguidos. Refugiaram-se na casa de uma família e a população cercou o local. Após negociações com a polícia para fugirem, no percurso do caminho combinado para a fuga a população alcança os três e os queimam vivos. Esse é o primeiro caso no Brasil em que o linchamento foi filmado e transmitido pelos jornais.

Guarujá, São Paulo, 2014. Mãe de família foi confundida com uma suposta mulher que estaria sequestrando crianças para fazer feitiçaria. A vítima teria ido buscar uma bíblia na casa de uma amiga e na volta para casa passou no mercado. Em seguida viu uma criança chorando e lhe ofereceu uma banana.

Uma pessoa da rua grita falando que ela seria a “sequestradora de crianças”. E rapidamente uma multidão se forma à sua volta. Todas as agressões que culminaram na morte da inocente foram filmadas e postadas no YouTube. Você pode ver a barbárie em cores. Está lá.

Em Goiás, nos últimos dois anos, existem relatos de cinco casos de linchamento, sendo quatro no interior.

Ambos os casos retratam uma concepção de justiça ultrapassada. Na evolução histórica do direito penal nota-se que tal direito foi criado para defender os sujeitos e promover uma sociedade mais pacífica. No entanto, séculos se passaram e ainda existem relatos de linchamento que se identificam com a fase da vingança pública, da era primitiva.

O ato de queimar pessoas vivas por motivos religiosos remete a Santa Inquisição que aconteceu no século 18.

O princípio jurídico das ordenações filipinas, que foi o código penal do período colonial no Brasil, previa também ações brutais com relação a certos crimes. Porém, observa-se que no momento da ação da justiça com as próprias mãos, as regras que norteiam o que é lícito parecem ser substituídas pela barbárie.

A intolerância das pessoas é um dos principais fatores que tem colaborado para o  aumento dos casos de linchamento no País, afirma Regina Miki, secretária nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça. “Eu tenho raiva, eu tenho ódio do outro porque ele é diferente, porque ele teve uma atitude que não acato, ou até mesmo porque ele teve uma atitude não condizente com a lei do Brasil. Então, eu me acho no direito de tirar a vida de outra pessoa.”

O sociólogo Émile Durkheim utilizou o termo anomia quando se observa que algo não está funcionando harmonicamente na sociedade, ou seja, algo da sociedade está funcionando de forma patológica ou anomicamente. Esse conceito sociológico também pode ser compreendido como um período com ausência de regra na conduta.

Segundo o sociólogo José de Souza Martins, autor do livro Linchamento: o lado sombrio da mente conservadora, linchamento significa uma punição radical. “Violência física praticada por multidões contra uma ou mais pessoas. Linchamento define-se pelo comportamento de multidão, quer dizer, um ato de violência súbito, irracional, não premeditado, vingativo, com pessoas castradas ou sendo queimadas vivas.” Para Martins, o linchamento eclode nos momentos de tensão social e desequilíbrios dos poderes, como pode estar ocorrendo no Brasil.

População ignora lei no momento da execução

Com tantos casos de linchamento no País, a alternativa mais eficaz para conhecer o que pode e o que não pode ser feito nos casos de flagrante de algum crime é recorrer à Lei. Por exemplo, para evitar a violência contra alguém que possivelmente cometeu um crime existe a presunção da inocência garantida pela Constituição no artigo 5º, inciso LVII, da qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal obrigatória”. Ou seja, somente após decisão da Justiça alguém pode ser considerado culpado.

No entanto, é fato que no Código de Processo Penal verificam-se vestígios de ações que podem ser executadas pelos cidadãos comuns, como a prisão em flagrante que consta nos artigos 302 e 303. E, no direito penal, a legítima defesa do artigo 25 que destaca: “entende-se em legítima defesa, quem usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.

Vale destacar no artigo 25 do Código Penal a palavra “moderadamente”, pois mesmo nas ações notificadas pelo código as ações devem ser contidas. Ou seja, segurar o ladrão para não fugir da autoridade é uma coisa, já colocar fogo e matar é outra. O Código Civil no artigo 1210, parágrafo 1º diz: “o possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de esforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse”. A título de exemplo: se alguém invadir a casa do sujeito e afirmar que a casa é dele, o sujeito possuidor poderá retirar o indivíduo com atos que não podem ir além do indispensável.

Integrante do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), Ariadne Natal, autora de tese sobre casos de justiçamentos sumários ocorridos na cidade de São Paulo e Região Metropolitana, entre 1980 e 2009, diz que nem todos carregam o estigma de que podem ser linchados: não é qualquer pessoa que pode ser desumanizada e, portanto, linchada. “As potenciais vítimas de linchamento carregam consigo a marca daquele que pode, em última análise, ser eliminado”, diz.

Ela estudou 385 casos de linchamento que foram noticiados pela imprensa, entre 1º de janeiro de 1980 e 31 de dezembro de 2009. Para ela, os participantes da ação acreditam em suas justificativas e não agem de forma aleatória. Ao contrário escolhem quem deve ser “justiçados”. Os pobres são os escolhidos invariavelmente.

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