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Especialistas se dividem sobre ‘doutrinação’ em prova do Enem

RIO - No domingo, o verbete sobre Simone de Beauvoir teve 30 alterações no Wikipedia. O número foi maior do que todas as outras mudanças já feitas no mesmo texto da enciclopédia on-line. O motivo foi a citação da pensadora no Exame Nacional de Ensino Médio (Enem), no sábado, o que gerou um grande debate sobre a posição de esquerda da autora e o uso predominante de textos desta vertente na avaliação. O gabarito oficial do Enem foi divulgado ontem.

Os críticos dizem que sobraram textos de Milton Santos, Paulo Freire e Zizek e faltaram de Heiddeger, Mises e Adam Smith nas provas do Enem. Nas redes sociais, postagens analisavam a preeminência de autores de esquerda como uma forma de doutrinação. Especialistas se dividem sobre a acusação, enquanto ex-presidentes do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) defendem que não há intervenção política na seleção das questões para o exame e afirmam que a quantidade de textos de autores ligados à esquerda nada mais é que um reflexo do pensamento da área de Humanas.

— Essa discussão é fruto do ambiente de radicalização política do país. Quando criticam, esquecem que a prova traz autores das mais variadas tradições, como São Thomás de Aquino, Thomas Hobbes, David Hume — avalia Marcus Dezemone, professor de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) — A caça às bruxas está até incluindo (Karl) Mannheim como marxista e pensador de esquerda.

Já na opinião de Miguel Nagib, coordenador do movimento Escola Sem Partido, a revolta nas redes sociais é o começo de uma percepção da doutrinação esquerdista no ensino.

— Existe um viés esquerdista em nosso sistema educacional. Isto fica claro no Enem. O aluno que não responde o que eles querem, erra e não entra na faculdade. Isto viola a liberdade de expressão.

Nagib cita a redação como grande exemplo de cerceamento:

— Os pais conseguiram tirar a questão de gênero do Plano Nacional de Educação, mas o Enem força para que o colégio tenha que tratar de algo que não é de sua responsabilidade.

Uma das questões citadas como “equivocadas” por Nagib e internautas traz um texto do geógrafo Milton Santons sobre globalização. Após a leitura do trecho, o candidato tinha que identificar uma consequência para o mundo do trabalho devido ao processo citado. A resposta era o desemprego, o que os críticos do exame dizem ser uma visão apenas da esquerda sobre a globalização.

— Não é uma visão. É baseado em dados. A globalização é boa para quem e é ruim para quem? Ela não tem efeitos iguais. O estudante precisa ter sensibilidade para entender que há consequências distintas para os diversos agentes incluídos nela. Quando o texto fala de “globalização perversa”, a resposta está direcionada a esta percepção. Por isso não há dúvidas sobre a resposta — afirma Dezemone.

‘GOVERNO NÃO ESCOLHE QUESTÕES’

A prova também trouxe questões sobre alteridade, com um texto do marxista Slavoj Zizek; autoritarismo, com um discurso de Francisco Campos; dependência estrangeira na época da ditadura, com uma charge de Ziraldo; e defesa da monarquia, com um escrito de São Tomás de Aquino.

No domingo, o ministro Aloizio Mercadante defendeu que o exame é plural e traz autores renomados. Presidente do Inep de 1995 a 2002, na gestão de Fernando Henrique, Maria Helena Guimarães de Castro acredita que o governo não influencia na elaboração dos itens.

— Não é o governo que escolhe as questões. Elas são um reflexo dos principais pensadores da área. O problema é quando o colégio se baseia unicamente neste exame e não aborda a pluralidade de pensamentos. Não é porque eu, por exemplo, estudei marxistas que não vou valorizar autores liberais.

Reynaldo Fernandes, que também foi presidente do Inep (2005-2009), diz que, sendo a prova um reflexo dos principais pensamentos da sociedade, quanto menos intervenção, melhor.

— Não dá para ter equilíbrio entre as vertentes. Algumas vão ter pouca adesão social. Acho que há um certo exagero nas críticas. O que se pode fazer? Criar um comitê ideológico para avaliar a prova? Qualquer tentativa de corrigir o que se chama de distorção pode gerar censura. Isto nunca é bom.

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