Home / Cotidiano

COTIDIANO

Divino que divide

O dia 21 de janeiro é o Dia Mundial da Religião. A data, comemorada desde o ano de 1949, tem por objetivo a conscientização e união das diversas religiões existentes no mundo, dado o fato de que o que deveria servir para unir e proporcionar esperança para os povos, muitas vezes é motivo de conflitos e divisão dos seres humanos.

Casos de violência em decorrência de intolerância religiosa são noticiados nos jornais frequentemente, mas há a velada, aquela que não sai na mídia, acontece diariamente e incomoda a vida de milhares de pessoas, adeptas das mais variadas religiões.

É o caso de Patrícia Maria Cezária de Jesus, 50 anos, que é enfermeira e afirma ter passado por diversas situações de preconceito em decorrência de sua escolha religiosa. Ela foi umbandista por quase 16 anos, sendo que parte de seus familiares frequentava o centro, e parte, pertencentes à outra religião, tentava convertê-los e frequentemente faziam comentários preconceituosos. “Eu ficava muito chateada e triste pelo fato de pessoas que não conheciam a religião nos julgassem, pensando que  fazíamos macumba e feitiços”, conta Patrícia.

Mayara Lustosa, 26 anos, doutoranda em biologia celular e estrutural, é adventista do sétimo dia desde os 15 anos de idade, e conta que é vítima frequente de comentários irônicos e maldosos por conta de sua escolha religiosa. Os adventistas guardam o sábado. Do por do sol de sexta até o por do sol de sábado os adeptos dessa religião não fazem atividades que seja em benefício próprio, e isso costuma despertar a curiosidade das pessoas de outras religiões.

“O sábado é dia é de descanso, oração e meditação, mas principalmente é dia de ir à igreja e fazer trabalhos voluntários. Mas em vários  momentos já ouvi comentários agressivos das pessoas, dizendo coisas como ‘você não faz nada’, ‘isso é coisa de preguiçoso’ ou ‘você só é adventista porque não quer trabalhar no sábado’, enfim...”, conta Mayara.

Ela explica que no início esses comentários vieram de sua própria família, já que sábado era dia de faxina em casa, e ela não participava. “Na escola eu também ouvia comentários em relação à minha religião, às vezes tínhamos aula no sábado e eu não ia, sendo que os próprios professores comentavam coisas como ‘mas você é tão nova e já com a mente tão fechada’”, recorda.

Depois, na faculdade, Mayara conta que as coisas se agravaram, principalmente pela escolha do curso: biologia.  “Para os biólogos, ciência e religião são áreas opostas. Para eles, um cientista deve se questionar e a religião não é fruto de questionamento”, explica. Ela, que crê em um Deus criador, se viu em muitas situações constrangedoras em decorrência de sua crença, já que a maioria dos cientistas acreditam na teoria da evolução das espécies.

Uma entrevista publicada em um site, na qual Mayara expôs seu ponto de vista pessoal acerca do criacionismo, rendeu dezenas de xingamentos e comentários agressivos que a magoaram muito. “Me chamaram de ‘vaca’, ‘bióloga de merda’, ‘ignorante’, enfim, muitas palavras horrorosas. A maioria dos que comentaram era de biólogos que estavam fazendo mestrado ou doutorado. Fiquei abismada  em perceber como pessoas cultas, estudiosas, educadores, podiam assumir aquela postura agressiva.  Nenhum deles questionou ou quis saber a minha história, ou o porquê de eu pensar assim, eles estavam ali apenas para me jogar em uma fogueira. Eles estavam tão dispostos a me jogar em uma fogueira como os religiosos fanáticos do passado”, desabafa ela.

Ela conta que várias pessoas já tentaram convertê-la à outras crenças e que não tem problema com isso. “Acho que quando uma pessoa tenta te converter a religião dela, no fundo ela te quer bem, está te desejando o melhor, é uma forma dela te trazer para um lado que ela enxerga como bom. Eu acho que quando essa tentativa vem em forma agressiva é que não faz sentido, pois as religiões partem do princípio do amor”, explica ela.

Para Mayara, essa é uma questão que vai além da parte religiosa, abrangendo também a educação e o respeito. “As pessoas criticam tanto, parecem não querer permitir que as outras pessoas façam suas próprias escolhas que são delas e só delas e por isso as agridem, apenas porque pensam diferente”, conclui.

Não acreditar também gera preconceito


Lucas Rezende, 25 anos, professor de física, é ateu. Ele conta que nas reuniões nas quais emite sua opinião acerca das religiões e do ateísmo sempre há comentários preconceituosos. “Tentam sempre me convencer que sem uma crença não podemos ser ninguém, e tratam como se eu fosse alguém pior só por não acreditar. Muitos tentam me convencer, agressivamente na maioria das vezes, de que eu sou obrigado a ter um ser divino a quem recorrer ou agradecer, e isso é sempre ruim, por que nesses casos eles tentam me convencer que eu sou uma pessoa ‘perdida’, ‘ruim’ e ‘demoníaca’”, relata ele.

Ele conta que frequenta igrejas quando é convidado por amigos de modo a mostrar que respeita as crenças de todos. “É sempre bom mostrar a todos que mesmo tendo opiniões diferentes podemos sim manter um amizade sadia, não fechei e nunca fecharei portas para conhecer religiões”, explica.

Lucas relata que se sente mal ao ouvir comentários de pessoas que não aceitam sua escolha espiritual porque muitas dessas pessoas enxergam a não-crença como um desvio de caráter. “Depois de situações recentes resolvi que não falarei mais sobre o assunto, decisão que já havia tomado em relação aos meus alunos por achar que eles têm uma criação em casa e que isso poderia prejudicar o amadurecimento e a relação deles com os pais e familiares”.

Questionado sobre o modo que reage frente a comentários maldosos e tentativas de conversão, Lucas diz que normalmente procura ficar em silêncio por acreditar que essa é uma decisão íntima. “Não respondo também pra não cair em um processo de evangelização por parte deles e de “desevangelização” da minha, e também pra não haver um desgaste da minha parte, que terei que escutar mais uma vez toda a conversa de que eu vou pro inferno, de que ninguém vai me ajudar quando eu precisar, o que na verdade acho um desrespeito, pois, somos livres pra ter a crença/não-crença que quisermos”, conclui.

Palavra de profissional


Sam Cyrous, psicóterapeuta de família e casal, explica que o preconceito religioso é mais uma forma dos muitos pré-conceitos, ou seja, ideias que surgem antes do contato com o outro, o diferente. “O problema surge, na verdade, porque consideramos que há um “outro” diferente de nós. Isso se reflete em contextos sociais, nacionais, regionais e também religiosos. Focamos nas roupas, no físico, no ritos e nos nomes que damos aos fenômenos espirituais transversais a todas as fés, mais do que em sua essência em comum, o amor ao próximo e o respeito aos fenômenos naturais”, defende.

Ele traz pesquisas em psicologia que relacionam o preconceito ao conformismo, já que pessoas conformadas com a realidade do jeito que ela é, aceitarão repetir os padrões do contexto social no qual se encontram: “Mas se descobrimos como educar para termos uma nova geração que busque a verdade por si só, livre das amarras de tradições do passado, que questionem e queiram perceber o mundo com sua própria consciência, teremos pessoas que arriscarão ter contato com o diferente, para, no fim, perceberem que, como diz a poetisa Maya Angelou, ‘somos mais iguais que desiguais, meus amigos’”.

Sam defende que se a religião veio para trazer a paz no mundo, não faz sentido que os conflitos nasçam dela. Ele explica que “o psicólogo Gordon Allport percebeu que contatos entre grupos distintos podem reduzir o preconceito. Percebeu que as características para esse grupo incluiriam cooperação com um senso de propósito, papeis equivalentes no grupo, e apoio das autoridades. O que faz, por sua vez fundamental, instâncias como Fóruns estaduais de Diálogo Religioso”.

Para Sam, a intolerância não pode ser combatida com confronto, mas com diálogo. “Vemos que as famílias mais estáveis e felizes são as que respeitam a diversidade no seu seio, enquanto que as que têm mais problemas e necessitam de apoio são aquelas que reagem mal quando um filho, por exemplo, resolve aderir outra Fé, ou até nenhuma. É importante aprendermos que apesar de nossas escolhas serem diferentes, a nossa realidade é uma e, portanto, precisamos aprender a conversar e seguir avante como um só, responsáveis pelo bem-estar do todo”, conclui ele.

Leia também:

  

edição
do dia

Capa do dia

últimas
notícias

+ notícias