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COTIDIANO

Cidade Colossal

O Arraial de Sant’anna foi fundado em 1727, há quase 300 anos, em um universo totalmente descaracterizado do nosso, a final mal saberíamos responder o que estaríamos fazendo se não estivéssemos imersos nos sons emitidos simultaneamente pelo notebook, pelo celular e pela TV. Sua construção deu-se devido à abundância de ouro na região, que justificou a força de vontade dos portugueses em desbravar o centro do continente perdido. Um senhor de sobrenome Bueno (que dá nome ao “setor nobre” [expressão ainda usada por alguns veículos de comunicação] de Goiânia, uma das maiores obras primas da especulação imobiliária de todos os tempos) recebeu da história a maior parte dos créditos pela coragem, além de uma polêmica estátua no cruzamento da Goiás com a Anhanguera.

Os contrastes visuais entre as capitais são imediatos. Primeiro, o relevo acidentado, e a magnificência da Serra Dourada a pintar de verde o azul do céu das fotos, diferente da malha de Goiânia, plana como um lençol estendido. Não existe simetria nos desenhos das ruas de Goiás, o que cria sequências que parecem munidas de vontade própria, um verdadeiro freejazz. As pedras do chão refletem com força os raios solares, estourando os brancos e jogando com as portas e janelas multicoloridas. Com o passar dos séculos, vários nomes foram atribuídos ao centro urbano hoje registrado oficialmente como Goiás, Goiás, Brasil. Atualmente, os termos mais usados são Vila Boa, Goiás Velho, cidade de Goiás.

Em meados do meio do ano, o município, Patrimônio da humanidade desde 2001, recebe uma enxurrada de pessoas vindas de várias partes do mundo em razão do Festival Internacional de Cinema Ambiental, atualmente na 19ª edição. O evento possibilita o contato de muitos goianienses com o passado do Estado, e impressiona principalmente os jovens, que brincam com as formas incomuns. Também é um momento de apoteose da produção audiovisual do Estado, cada vez mais ampla. A Mostra ABD, realizada este ano entre 21 e 23 de junho, reúne os nomes do passado, do presente e do futuro do cinema goiano. A cidade também abriga o curso de Cinema e Audiovisual do IFG, e é promessa embrionária de polo de produção nesse momento importante do século XXI.

Goiás³ 

A impressão é de que esses trezentos anos reduziram a percepção de nosso tamanho físico no espaço. Na antiga capital, tudo parece maior, mais trabalhado, esculpido. As portas, janelas, igrejas, detalhes arquitetônicos. É tudo grande, como se os detalhes que conhecemos atualmente fossem diminuindo através das décadas, à medida em que concederam poder de zoom aos nossos olhos. A cidade monumental, ornada, a pedra colossal cravada na sombra da Serra Dourada, nunca ostentou em quantidade de habitantes. Cada um de seus moradores possui uma importância insubstituível no enredo da cidade. As mortes não são subestimadas ou registradas em planilhas através de números excêntricos e dançantes, distribuídos em categorias necessárias à logística metropolitana.

Sua extensão utópica e futurista, Goiânia, distribui-se entre seu milhão e meio de pessoas de maneira claustrofóbica, comparada ao berço da civilização euro-goiana. Tudo é menor, ridicado. Os quartos, as portas, as janelas, o ar (cujo volume chega a ser menor que o de carne humana nos automóveis de transporte público, nas horas de pico), a esperança, a paciência. Goiânia é ansiosa. Uma ânsia por progresso e tecnologia. De desligar-se do estereótipo do atraso atribuído pelos primos mais velhos ao Estado, com o fim do ciclo do ouro e o início dos trabalhos agrícolas. É a vontade de ver prédios pintando o horizonte, de fazê-los reproduzirem-se como coelhos. De provar que Goiás é sinônimo de modernidade. De desmatar uma reserva só pra poder desenhar um bairro novo.

Goiânia é a materialização do dinheiro imaginário, do crédito e da especulação imobiliária. É o fim da preocupação com a estética das fachadas de casas (cada vez mais capsulares, blindadas e neutras, não servem exatamente para morar, mas para isolar-nos dos perigos mortais do mundo e da “maldade” de nossos próprios semelhantes). É a diluição das pessoas em uma substância homogênea, de comportamento químico imprevisível. Difícil de documentar, de descrever, de fotografar. É o fim do público. É grama das praças com marcas de pneus de moto. A explosão dos banners nas zonas comerciais. Campinas, Bernardo Sayão, Centro, é como se você tivesse clicado em um site desprotegido cheio de pop-ups. Goiânia é a morte da importância do “bom-dia”.

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