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A Goiânia protegida

As cidades vivem em ininterrupta ocupação. Apenas a história tem o poder de tornar intocáveis ambientes que serviram de espaços para a prática da sociabilidade. E se as cidades vivem em constante entrechoque de cores e estilos, fluxos e progressões prediais, imersas quase que num ritmo frenético de sobrevivência, o tempo congelado é que possibilita desacelerar o humano.
É, em última instância, quem deve garantir a perpetuação da falsa "imortalidade" das coisas.  
Goiânia começa a parar no tempo em busca da imortalidade: alguns hotspots do passado já servem de porto da memória. Existem cerca de 70 bens culturais preservados e tombados que clamam atenção do poder cultural. Em Goiânia, eles se dividem entre os conhecidos e aqueles que nos surpreendem por serem carimbados com a garantia da preservação. 
O melhor exemplo dos bens que foram tombados está na Praça Cívica, no coreto da Avenida Goiás, prédio do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), Grande Hotel, relógio da praça do Trabalhador e Fórum de Goiânia. Mesmo olhares mais desavisados sabem que estão diante de paisagens urbanas intocáveis. 
Todavia, é de pouco conhecimento público o tombamento de prédios e obras como as criações de DJ Oliveira que desaparecem aos poucos nas paredes do Restaurante Universitário, a chefatura de polícia, Teatro Otavinho Arantes, o Jóquei Clube, o Ateneu Dom Bosco e os dois murais do pintor Frei Confaloni, praticamente abandonados na praça do Trabalhador.
Figura
A figura jurídica do Tombamento é introduzida no  Brasil por meio das regras de direito administrativo, que prevê um comportamento diferenciado para aquilo que é reconhecido como bem de interesse cultural e histórico.
O espírito da lei é o mesmo de outros países civilizados: uma nação que não investe no tombamento não perpetua sua história nem revela apreço pelos antepassados. No Brasil, as regras existem, mas significam pouca segurança jurídica de que o bem venha a continuar - de fato - existindo.
Goiânia adotou duas figuras de proteção: o tombamento e a preservação. "A diferença fundamental é o acesso que o cidadão tem a esta figura jurídica, pois o tombamento ocorre em bens coletivos. Mas não significa que ocorre a desapropriação do bem. São figuras jurídicas distintas", diz a advogada administrativista Polyana Rocha, que pesquisa o tema na Universidade Federal de Goiás (UFG).
De acordo com a especialista, o tombamento  é uma tentativa, por meio de lei específica, de manutenção dos valores afetivos  ameaçados de destruição. "É também uma expectativa de direito para as futuras gerações". 
A ambientalista Ludimila Fernandes, da ONG Ecocerrado, trouxe para a redação do DM uma lista de novos alvos a serem tombados e que merecem preservação histórica e ambiental. Para a pesquisadora,  não basta a lei, mas a ação efetiva e a atuação de bastidores. 
Ela cobra, por exemplo, instrumental de proteção para os mercados municipais além-Centro/Campinas, caso da Vila Nova, Pedro Ludovico e Centro Oeste.  
A visão conservacionista depende necessariamente da postura dos gestores, diz Ludimila. "Não tem ação efetiva sem recursos e interesse. E isso é uma grande falha frente ao especulador. Existe uma Goiânia desaparecendo, residências de grandes personalidades, pontos de encontro da intelectualidade, antigos bazares, cinemas", diz.
Ela cita o processo de degradação enfrentado pela árvore "Moreira", no Centro de Goiânia. Juridicamente, tentou-se até mesmo o registro do tombamento no 4º. Registro de Imóveis. "Se a Moreira sofreu em busca de preservação, tendo toda a lei a seu favor, imagine a outra Goiânia que carece de proteção", diz Ludimila. 
O problema maior do tombamento começa quando o gestor não se interessa pela proteção e mais do que isso: quando ignora a necessidade de desapropriação.  "É o que ocorre em vários casos de Goiânia". 

Constituição estabelece proteção

A Carta Magna brasileira elencou o tombamento como norma de efeito imediato na sociedade brasileira. Ou seja: é regra de ouro para a proteção, já que jurisdicionaliza o assunto como fundamental e essencial. 
A Constituição explicita que a própria comunidade tem o dever de  promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro. As ações listadas pela norma constitucional incluem o inventário, registro, e vigilância, além das ações mais forçosas, caso do tombamento e desapropriação. "Temos ainda outras formas de acautelamento e preservação. Mas é clássica e juridicamente perfeita a ação de tombamento e o uso da desapropriação, que tem sido evitada pelos gestores", diz Polyana Rocha.
A advogada esclarece que as implicações jurídicas alcançam ainda o prazo do tombamento, já que a transferência do imóvel precisa ocorrer em 30 dias. 
É o Decreto-Lei n. 25/37 que regulamenta o tombamento no Brasil. Ele não se choca com o que estabelece a Constituição de 1988. Apesar de antiga, a norma prevê definições para os atos de tombamento. 
O decreto traz certo anacronismo, já que impede, por exemplo, que se considere como patrimônio nacional  as obras de origem estrangeira, o que inviabilizaria o tombamento das criações de Romero Brito (artista radicado em Miami) doadas para o país. Ou mesmo a arte produzida  pela goiana Ana Maria Pacheco, que mora na Inglaterra.  
 
Arte ameaçada
O tombamento, sob a ordem jurídica, abrange também monumentos naturais, sítios e paisagens. A natureza é a que mais sofre com a especulação imobiliária, já que a cidade se descaracteriza diante da pressão urbana. 
Mas tão desprotegidas quanto árvores e rios, as obras de arte passam desapercebidas dos olhares e sensibilidade dos goianienses. Um dos casos rumorosos é o conjunto artístico de DJ Oliveira que está no Restaurante Universitário. É preciso forçar os olhos para enxergar o mural abandonado. 
Da mesma forma, o edifício da praça do Trabalhador - com duas obras monumentais do pioneiro modernista Frei Confaloni - enfrenta justamente o esquecimento e o processo de degradação que o tombamento visa evitar. 
 
Mutilação
O artigo 17 da lei que trata da proteção histórica e artística nacional afirma que "as coisas tombadas não poderão, em caso nenhum ser destruídas, demolidas ou mutiladas". 
Polyana Rocha informa que o mais grave é o silêncio. A defensora esclarece que a legislação estabelece que caso o ente federado não tenha condições de proteger o bem deve comunicar imediatamente aos órgãos competentes da União para que ele seja disposto a um processo de proteção federal.  
 

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