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Demiurgos da cultura goiana

Considerada arte de difícil elaboração, principalmente por demandas impressionantes de gasto de energia, a escultura tem proporcionado a perenidade para inúmeros artistas e reforçado o caráter artístico de numerosos povos.

A técnica de representação através do relevo evoluiu com o tempo a partir de abordagens variadas, caso da fundição, cinzelação, moldagem e até mesmo a aglomeração de partículas.

Em cada civilização, escultores se revelam proeminentes contadores de histórias. Veiga Valle (1806-1874), um dos primeiros artistas a se colocar no segmento autoral goiano, por exemplo, produziu esculturas sacras no estilo barroco e marcou a trajetória artística de Goiás. Sua obra de certa forma anacrônica, fora do tempo, revelava exatamente o isolamento vivido pelo estado. De uma só vez, logo, Veiga Valle é estética e história, nos mostrando a sociologia dos costumes, o trato da informação e a vida mental das cidades daquela época.

Considerado um dos mais importantes escultores goianos, professor Angelos Ktenas relata ao DM que não sabe ao certo como surgiu a primeira inspiração para seguir na atividade de escultor. Mas se recorda do período inicial como se fosse hoje: “Quando cheguei da Grécia, fui trabalhar. Fui motorista de caminhão, mascate, vendedor de gravatas na avenida Goiás. E sempre andei com um canivetinho no bolso, mas não era para ferir ninguém não. Pegava um pedaço de madeira e fazia coisinhas. Sim, era bobagem, não era arte, não dava para falar que era arte. Mas fazia. Estou me referindo há 60 anos. Foi assim que comecei”.

Ktenas foi um dos primeiros alunos da Escola de Artes que no futuro seria convertida em Instituto de Belas Artes e hoje Faculdade de Artes Visuais, da Universidade Federal de Goiás (UFG). Nela, aprendeu esculpir, encontrou sua expressão no bronze e ali ensinou centenas de alunos a seguirem seus passos.

O grego que se naturalizou brasileiro tornou-se um artista de academia respeitado, mas aos poucos conquistou espaço em salões de arte nacionais e internacionais. E avançou principalmente na produção que caracteriza espaços públicos.  Hoje, a arte de Ktenas está espalhada em locais como Assembleia Legislativa, praças públicas, cemitérios e coleções privadas. Isso em Goiás. Pois sua obra foi para todos os cantos do mundo.

A arte que teve início com canivete tornou-se rigorosa composição, muitas vezes polissêmica, capaz de despertar emoções diversas e comunicar ao mesmo tempo a perenidade de uma espécie de criação que atravessou as civilizações.

Especialista em bustos, Ktenas criou a imagem do ex-senador e ex-ministro Alfredo Nasser que figura na entrada da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás. O político representado é uma lenda na política brasileira que aos poucos desaparece frente os poucos parentes que deixou e lamentável desconhecimento público. Nasser não teve filhos, não fez obras faraônicas nem é conhecido por improbidades administrativas. Ao contrário, é um raríssimo político cujos feitos foram a bondade e honestidade – uma verdadeira raridade, um em cem mil, em Goiás. Coube ao trabalho de Ktenas conduzi-lo para a posteridade, já que o ex-ministro está esculpido e exposto ao público.

Apesar de Ktenas desenvolver inúmeras temáticas, o corpo humano se sobressai em seu catálogo, já que revela apreço pela anatomia. E dele conta narrativas, como uma que retrata o desespero que ele próprio sentiu quando acompanhou o irmão em uma batalha contra uma drástica doença.

Outro cronista que usa bem as formas é o escultor Elifas Modesto, reconhecido por suas mulheres esgarçadas, chupadas pelos filhos em busca de alimentos, representativas de uma era de movimentos sociais e geografias urbanas. “Esta temática surge com a ideia de que o artista pode e deve também exercer seus direitos políticos. Faço denúncias através das formas”, diz o artista, que cria com argila.

BUSTOS

Assim como Ktenas, Elifas também desenvolve bustos e imagens de personagens públicos. Vai deixando suas pegadas para quem passa de carro, veloz, e pode ver verdadeiras ilhas estéticas na cidade. É dele, por exemplo, o painel com os arcebispos goianos, produzidos para a Igreja Católica.  “Quando fiz estas obras me senti um Aleijadinho e Michelangelo, tamanha a dimensão da obra e da instituição”, recorda Elifas.

Ktenas e Elifas divergem tecnicamente. Para o primeiro, adepto do bronze e outras técnicas, o uso de terracota pode ser apenas uma das fases da produção de uma escultura. Já o segundo defende que a argila manipulada já se caracteriza como a arte final.

A discussão é mais técnica do que uma temática compreendida pelo fruidor. Adeptos do bronze, como Ktenas, falam da diferença entre o atributo eterno ou efemeridade. Daí que quanto mais se busca esta categoria de “metal”, mais a arte se revela poderosa, cara e pronta para enfrentar os ventos do tempo.

Existem ainda as fases de produção. Em que pese grandes exemplares da escultura universal serem produzidas em bronze, como as deixadas por Rodin, a argila origina também o majestoso e o belo. A construção da obra diretamente no barro já toma tempo e imaginação suficiente dos artistas e possibilitam a expressão de forma mais popular e acessível.

O bronze exige ainda mais gastos de energia e de recursos. É uma engenharia da forma. E bem resumido [sem entrar nos detalhes e suprimindo etapas] seria assim: cria-se um modelo em gesso, depois se joga um material como silicone, quando ocorre a criação do molde do modelo. Em seguida, é colocado outro material refratário, distribui-se cera derretida no molde, preenche-se o espaço vazio. Após a cera secar, abre-se o molde de silicone. A cera então recebe  revestimento cerâmico, com cerca de um centímetro. No forno, a cera se derrete e a cerâmica é queimada, tornando-se resistente. Por fim, em uma temperatura ainda maior, é derramado bronze em estado líquido, através de uma camada, tomando o lugar da cera. A escultura está quase pronta. Após resfriar, são retirados os condutores, o revestimento cerâmico é quebrado e, por fim, o material refratário que está no interior da peça, é retirado.  A escultura fica oca. É um trabalho de Hércules.

Daí que é de se espantar pela falta de incentivos dos poderes públicos de Goiânia e Goiás para que este embelezamento transborde nos espaços urbanos da Capital.

Goiânia é uma das cidades do mundo que menos investe na produção de arte pública e criação de monumentos. Dá para contar nos dedos os que existem. Artistas de gabarito não faltam. Os demiurgos estão aptos a construírem o inimaginável.  Faltam políticos para ousarem.

Divino Jorge: o trabalhador do barro


Divino Jorge (1930-1997) é a expressão mais pura, comovente e dedicada da arte popular em Goiás. Das mãos deste escultor e ceramista, surgiram obras delicadas e representativas de cenários característicos do choque entre a vida do campo e a modernidade goiana.

Como trabalhador, ele não poderia deixar de representar exatamente seu ofício: o trabalho na olaria. Sua produção demonstra uma arte comprometida com a linguagem moderna, o desenvolvimento da figura e a síntese das formas que enxergava.

Divino é considerado uma lenda para artistas contemporâneos como Elifas Modesto, que ainda adolescente foi em busca dos ensinamentos do escultor goiano. “Produziu uma arte pessoal, rigorosa, algo que ainda será redescoberto pelo Brasil”.

Divino desliga pontos das dimensões de sua obra. E faz um vigoroso estudo dos sólidos, numa perfeita matemática da composição – mas livre das amarras e peias das métricas. Por isso não representa a anatomia com realismo, mas com deformação. Procurou moldar também sua sensibilidade, jamais rebaixando a arte ao mero ofício decorativo.  Ele colocou a mão como artista em tudo que fez, dando formas não ‘industrializadas’, mecanizadas, mas sempre sensíveis e humanas.

Uma de suas criações, “Homem tomando água”, retrata o cotidiano, o simbólico, a vida em um dado momento na história de seu povo.  Por sua vez, uma peça como “As irmãs” revela uma carga emocional de grande volume. A produção expõe o artista em direção ao expressionismo, dando uma grande contemporaneidade para sua obra.

Uma das principais estudiosas das esculturas de Divino Jorge, a doutora em artes Anahy Jorge, filha do artista e professora da Faculdade de Artes Visuais (FAV), descreve o escultor como alguém que dava passos muito bem dados, com reserva e discrição. Ela diz que as obras iniciais, principalmente, foram “criadas em momentos vagos de um profissional que confeccionava tijolos e telhas para a sobrevivência familiar e foram, durante algum tempo, guardadas por insegurança e timidez”.

Esta capacidade de sintetizar a vida e olhares torna a escultura de Divino Jorge significativa, um marco na produção artística goiana e que clama por maior valorização dos órgãos públicos que cuidam das políticas culturais.

MADEIRA

Outro escultor de grande importância no cenário goiano é Gilvan Cabral, que percorre com sua arte traços indígenas e negros do país, em um sincretismo de formas modernas. Sua arte é um espanto de complexidade. Cabral sabe tirar formas dos suportes que escolhe, quase que desenhando na superfície.

O escultor utiliza basicamente a madeira como base de sua arte, revelando uma criação figurativa e de grande expressividade - capaz de comunicar o humano que habita o território sem fronteiras do Planalto Central.

Gilvan diz para a reportagem que o uso da madeira é na atualidade uma luta, já que sua obtenção não é fácil. Diferente do bronze, enfrenta a pressão da consciência ambiental daqueles que habitam o Cerrado. E isso o move a procurar material reciclável para se manifestar e, assim, dizer ao mundo o que pensa.

Mulheres marcam paisagem urbana


As mulheres marcam profundamente a imaginabilidade pública de Goiânia com suas obras. No grupo dos grandes artistas goianos, elas se destacam em importância, currículo e expressividade.

Neusa Moraes (1932-2004), por exemplo, autora do popular “Monumento às Três Raças”, deixou obras marcantes da paisagem urbana e que ajudam a  construir o design da goianidade.

Depois do clássico monumento, a obra mais discutida de Neusa é a escultura de Pedro Ludovico e seu cavalo, exposta na Praça Cívica após uma série de polêmicas - ainda hoje não bem resolvidas, como a desproporcionalidade da obra e até mesmo questões administrativas e financeiras.

A pioneira Maria Guilhermina é também uma esteta de rigor e que compõe o seleto grupo dos alunos de Gustav Ritter, responsável por deixar obras magníficas e pouco expostas ao público.  A obra de Guilhermina é monumental, com exposições em diversas partes do mundo. Sua produção em pedra sabão é disputada dentre colecionadores e revela uma artista multifacetada, com significações ampla e que procura mesclar seu olhar de artista e de acadêmica, já que acumula uma carreira de formação sólida no segmento em que atua.

INGLATERRA

Uma das artistas mais virtuosas de Goiás, Ana Maria Pacheco, também se dedica ao registro das formas e volumes com exatidão e polissemia. A diferença é que após sua incursão para a Europa, onde foi se aperfeiçoar nos estudos, acabou fincando uma bandeira do país. É hoje uma artista de duas nações, com sólida manifestação artística na Inglaterra. Suas esculturas se espalham na Europa na mesma medida que aumenta a lenda em torno de seu nome.

Com grande trajetória na pintura, ela deixa ainda sua marca nas esculturas em madeira, principalmente. As formas carregam densidade, cores escuras e penumbras, formando uma arte densa e que se adequa mais ao espírito europeu na atualidade.  Apesar de distante de Goiás, não se deve desprezá-la como uma cronista da terra, já que por décadas reinterpretou nossa religiosidade, a política e os  signos do modernismo brasileiro. Sua arte é visível na obra de outros artistas, como Siron Franco, que apresenta muitas vezes, em suas telas, formas que realizam uma síntese de Maria Pacheco e Frei Confaloni.

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