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Cem anos de Tropas e Boiadas, livro de Hugo de Carvalho Ramos

Enfim, creiam mecês, é ter sempre desapego ao perigo”. Uma frase retirada de um conto não diz muitas coisas sobre o conteúdo do livro. Apesar disso essa pequena frase que inicia esse texto e faz parte do livro Tropas e Boiadas de Hugo de Carvalho Ramos demonstra um pouco do que é a profundidade dentro dessa obra. Conhecido no cenário brasileiro como um livro regionalista, as histórias de Tropas e Boiadas são muito mais que um resgate da língua dos tropeiros e tangerinos do sertão brasileiro.  Esse “desapego ao perigo” é de certa forma uma síntese, mas não só do livro: é também um pouco da vida intensa e melancólica de Hugo de Carvalho Ramos.

O escritor Hugo de Carvalho Ramos nasceu na Cidade de Goiás, na época conhecida como Vila Boa, no ano de 1895. No ano de 1917, com 22 anos de idade, publica o livro Tropas e Boiadas e consegue alcançar o prestígio social dos literatos brasileiros logo de início. Talvez porque a obra de Hugo é a primeira que trata a linguagem do tropeiro e tangerinos (pessoas que cuidam do gado) valorizando a cultura formada no centro do Brasil. O “Tropas e Boiadas” é reconhecido também por ser o primeiro livro goiano a ultrapassar os limites da Serra Dourada e ser consumido em outros lugares do país. Neste ano ele chega ao centenário de sua publicação.

O conteúdo do livro é praticamente obrigatório para compreender a formação da sociedade e cidades goianas bem como a rotina dos primeiros habitantes do Brasil central. O escritor Mário de Andrade conhecido por ser um dos incentivadores do modernismo brasileiro afirmava que todo filho dessa nação deveria ler Tropas e Boiadas. O mineiro Guimarães Rosa notou o regionalismo e a profundidade da escrita de Hugo e fez do livro goiano referência para Grande Sertão: Veredas e outros livros de sua autoria. Monteiro Lobato também teria procurado Hugo em vida para editar seu livro, mas o vilaboense teria recusado. Após a morte do goiano, Monteiro Lobato tentou novamente com a família e conseguiu a permissão para editar a segunda edição de Tropas e Boiadas.

Desapego  ao Perigo 

A vida de Hugo de Carvalho Ramos parece ter aquele fogo poético: foi intensa, rápida e um tanto dolorosa. Aos 22 publicava o seu primeiro livro e com ele alcançou certa fama nacional. Logo após o lançamento Hugo perde o pai que era bem próximo, muda-se de Goiás com a mãe e irmão para nova casa no Rio de Janeiro. Abalado pela mudança e perda do pai, ele teria desenvolvido uma suposta depressão e, por fim, Hugo tira a própria vida com uma rede de dormir amarrada ao pescoço.

A partir dessa biografia aparentemente simples o cineasta goiano Lázaro Ribeiro começou sua pesquisa sobre a vida de Hugo. Em entrevista ao Diário da Manhã o cineasta falou sobre suas descobertas e como foi o processo de levantamento de dados que desembocou no filme Ficção chamado “Hugo” que teve sua estreia na noite de ontem (23/6) no Festival Internacional de Cinema Ambiental (Fica). Lázaro cita que entre cartas, relatos e baús com poemas ele percebeu que a figura materna sempre foi um enclave na vida de Hugo.

A biografia do escritor goiano é dificilmente acessada e esse apagar da memória é responsabilidade da mãe de Hugo. Após o suicídio em 1921 a mãe teria reunido tudo que Hugo havia escrito em vida, enfiado em um baú e encaminhado para o irmão Vitor de Carvalho Ramos que morava em Minas Gerais. A partir daí ela teria proibido a família de citar o nome de Hugo dentro de sua casa, fato que contribuiu para que os próprios descendentes de Hugo não conheçam sua história atualmente.

Vitor e Hugo 

Os irmãos Carvalho Ramos sempre tiveram um contato com a literatura: a mãe era leitora e o pai chegou a publicar um livro chamado Genius. O nome dos irmãos, inclusive, foi inspirado no escritor de Os Miseráveis, Vitor Hugo.

Com a morte de Hugo seu irmão recebeu todos os originais que não foram queimados pela mãe. A partir disso ele começa a publicar os contos, crônicas e poemas de Hugo e em cada publicação insere um pouco da biografia do irmão. Lázaro Ribeiro conta que para acessar toda a biografia de Hugo de Carvalho Ramos foi necessário encontrar essas publicações, junta-las e a partir daí conseguir traçar uma linha do tempo sobre a vida do escritor.

O irmão de Hugo foi um dos únicos da família que continuou incentivando seu trabalho. Com sua morte boa parte do trabalho de Hugo se perdeu dentro do famoso baú. De acordo com Lázaro, a família não permite que pessoas tenham acesso à esse arquivo. Ele acredita que a depressão, o suicídio e uma possível homossexualidade do autor sejam uma espécie de estigma para a família.

Depressão ou loucura? 

A morte do pai de Hugo parece ter afetado diretamente o psicológico do escritor. Outro agravante foi à mudança da Cidade de Goiás para o Rio de Janeiro com a mãe e seu novo marido. Lázaro conta que durante o levantamento descobriu que a mãe havia marcado uma linha dividindo a nova casa e dizia: desse lado fica a minha família e deste fica a família Carvalho Ramos. O cineasta também conta que a mãe via em Hugo os mesmos traços do pai, que foi diagnosticado com esquizofrenia (na época loucura) ao final da vida.

Atualmente sabemos que era comum considerar-se como “louco” a pessoa que apresentava um desvio psicológico. Com seu jeito particular e até mesmo sisudo, Hugo de Carvalho Ramos sofreu com as opressões da mãe. O cineasta Lázaro acredita que essa “loucura” avistada pela mãe era nada mais que sintomas de depressão que culminaram no seu suicídio aos 25 anos de idade.

Outro fator que pode ter influenciado nesse tratamento ríspido é uma possível homossexualidade do autor que não era aceita pela mãe. Como as biografias de Hugo são incompletas não é possível afirmar com certeza sua opção sexual. Apesar disso Lázaro conta ter encontrado uma pista dentro de uma carta de Hugo para sua irmã mais jovem onde fica subentendido sua opção sexual.

Filme “Hugo” 

O cineasta e pesquisador Lázaro Ribeiro lançou na noite desta sexta-feira um filme ficcional baseado nessas informações que coletou sobre a vida de Hugo. Lázaro é conhecido no cenário audiovisual goiano por trabalhar em seus filmes o “patrimônio imaterial” da cidade. Ele disse que sempre percebeu uma apresso muito grande pelas obras arquitetônicas, mas sentia uma carência quando se tratava de memória dos goianos.  Formado em história Lázaro conta que escolheu o curso por ser o curso mais próximo do cinema documental (na época não havia cursos em Goiás). Com o surgimento do Fica o cineasta passou a frequentar todas as oficinas e sugar o máximo que o festival poderia oferecer. Foi o primeiro goiano a ter filme selecionado para participar do festival e com isso “abriu” a categoria dedicada a filmes regionais.

“Hugo” foi baseado no filme documental Reminiscências que apresenta toda essa coleta de dados sobre a vida do escritor. O processo de documentação da vida de Hugo foi realizado por Lázaro em parceria com Jadson Borges. O cineasta aponta que “Hugo” é uma espécie de recorte da vida intensa e rápida do escritor. A produção foi possível pelo apoio da Veríssimo Produções e realizado pela LR Produções, de Lázaro, em parceria com Casa de Cora e do ponto de cultura Imagem da Memória.

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