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CULTURA

Por dentro do fascismo

Luiz Zanin OricchioPor que, em pleno século 21, escrever milhares de páginas sobre um ditador como Benito Mussolini (1883-1945)? O escritor Antonio Scurati responde que a figura de Mussolini, ao contrário da de Hitler, conta ainda com certa aura “benign

Luiz Zanin Oricchio

Por que, em pleno século 21, escrever milhares de páginas sobre um ditador como Benito Mussolini (1883-1945)? O escritor Antonio Scurati responde que a figura de Mussolini, ao contrário da de Hitler, conta ainda com certa aura “benigna” - apesar de ter comandado um violento regime ditatorial e arrastado o país a uma guerra que o arrasou. Sua ideia, com um romance histórico de três volumes, é enxergar o fascismo por dentro. Ver o interior do monstro, sem atenuantes ou mistificações.

Outra motivação para escrever obra de tal envergadura seria a ascensão, pelo mundo, de líderes de extrema-direita como Matteo Salvini na Itália, Donald Trump nos Estados Unidos, Recep Erdogan na Turquia, Viktor Orban na Hungria e um longo etc. Antidemocráticos e liberticidas, seriam discípulos ou herdeiros de Mussolini? Questão a ser debatida, mas com certeza a chegada de personagens desse tipo ao poder representa o mais desafiador mistério político do nosso tempo. Convém dar uma olhada no passado para ver se esclarece o nosso presente.

Em “M - O Filho do Século”, Scurati narra, em 812 páginas, a primeira parte da vida de Benito Mussolini - da infância e juventude pobres à tomada do poder na chamada "Marcha sobre Roma", em 1922. Na segunda parte dessa projetada trilogia, “M - O Homem da Providência” (608 páginas), Scurati descreve a edificação do Estado fascista, a consolidação da ditadura na Itália com a consequente dissolução do regime democrático. A terceira, por certo, trará sua aliança com Hitler, a aventura na guerra, a queda em 1943 e a derrocada final, que, como todos sabem, termina em Milão, em 1945, fuzilado e pendurado pelos pés, o cadáver em exposição pública, junto com o da amante, Clara Petacci.

Da maneira como é escrita, a narrativa de Scurati nos enche de encanto - e também de horror. Encanto, porque, ao usar técnicas de ficção, como num romance, o transe da História salta aos olhos, vivo e pulsante. Horror, porque são muitas e visíveis as semelhanças entre aqueles tempos e o nosso. Em especial em países cuja base democrática vem sendo corroída por candidatos a tiranos.

Há invenção na forma, não no conteúdo. O texto de Scurati tem o frescor das boas narrativas, mas o rigor histórico se alia aos recursos ficcionais. Já no primeiro volume, esclarece: “Fatos e personagens deste romance documental não são fruto da imaginação do autor. Cada acontecimento, personagem, diálogo ou discurso aqui narrado é, ao contrário, historicamente documentado e/ou fidedignamente testemunhado por mais de uma fonte.” Romance “documental”, portanto.

Como forma, trata-se de obra multifocal e polifônica. Às vezes narra em terceira pessoa, mas usa muito o discurso indireto livre, o fluxo de pensamento de alguns personagens, bilhetes, conversas grampeadas, documentos oficiais, notícias de jornais, dossiês preparados pelos serviços de segurança. Todas as fontes convergem para o caudal da narrativa.

Esse material diverso, integrado ao romance, tem um efeito calculado, muito difícil de ser obtido em obras históricas, que é o de mergulhar o leitor do tempo presente no espírito do passado. E, também, funciona como uma câmera indiscreta, abrindo a cortina dos bastidores do poder.

O segundo volume, “M - O Homem da Providência”, começa com o Duce doente, padecendo miseravelmente de uma prosaica, porém grave, úlcera no duodeno. Querem operá-lo. Ele não consente, prefere tratamentos mais conservadores e sai mais forte da doença.

Enquanto age para corroer freios e contrapesos das instituições, luta para conter seus pitbulls, que podem comprometer seu caminho rumo ao poder sem limites. Entre esses seres soturnos, destaca-se o sinistro Roberto Farinacci, adepto da violência pura. Ele convém ao regime durante certo tempo, depois começa a perturbá-lo. Como sempre acontece nesses casos, foi descartado assim que cumpriu sua missão e se tornou incômodo.

Mussolini sobrevive aos seus rebeldes, mas também a uma série de atentados. Quatro, no total: ataques a bala e a bomba, dos quais sai levemente ferido, e cada vez mais forte aos olhos do povo que o tem como predestinado e indestrutível.

Esse livro, que começa pela úlcera no aparelho digestivo, termina com a glória, um tanto vazia, da exposição montada para comemorar os dez anos da Marcha sobre Roma. A marcha é um episódio tão fundamental que, a partir dele, o Duce cria um novo calendário, o da Era Fascista, escrito em algarismos romanos, que teria a data de início de 28 de outubro de 1922, quando as milícias entraram em Roma, na ausência de Mussolini. Ele não estava lá. Prudentemente, mantinha-se em Milão, de onde seria mais fácil fugir e pedir asilo na Suíça caso tudo desse errado.

Em sua trajetória, o Duce se depara com um problemão - o sequestro e assassinato do deputado socialista Giacomo Matteotti pelas milícias fascistas. Matteotti havia denunciado fraude nas eleições de 1924. Foi morto no mesmo ano. O crime poderia chegar até Mussolini e acabar com seu reinado. Ao contrário, são as medidas de exceção tomadas para garantir sua imunidade que aceleram o processo de construção do Estado autoritário. Há um ótimo filme a respeito desse episódio, “O Delito Matteotti”, de Florestano Vancini, com Franco Nero no papel do socialista.

Mussolini lavra novo triunfo ao conseguir um acordo com a Igreja Católica. Com o Tratado de Latrão, assinado em 1929, é concedido o território que forma hoje o Estado do Vaticano. Em troca, o regime ganha o apoio da Igreja, fundamental na Itália daquela época. Fecha assim a tríade que cimenta o poder fascista: religião, nacionalismo, defesa dos valores da família, dos costumes e da tradição. Deus, pátria, família.

Muito parecido com o que a gente vê e ouve por aí e por aqui, não? Mas é preciso cuidado. A história não se repete. Ou melhor, como já disse um filósofo, pode se repetir como farsa. O que não deixa de ser incômodo, e mesmo trágico.

Em todo caso, guardadas a distância histórica e as mudanças de hábitos e tecnologia, o receituário fascista, que se depreende da trajetória do Duce, parece ser aplicado ponto por ponto pelos governos hoje chamados de “iliberais”. A destruição das liberdades e garantias é o objetivo último e maior desses regimes. Muitas vezes, por paradoxo, a democracia é abolida em nome da “liberdade” dos indivíduos.

Essa desconstrução pode se dar num golpe militar, tradicional e bruto, como os que assolaram no passado a América Latina em países como Guatemala (1954), Brasil (1964), Chile (1973), Uruguai (1973) e Argentina (1976). Ou por aproximações sucessivas, em que o regime iliberal rói por dentro a democracia, viciando e aparelhando instituições, minando a capacidade operacional dos contrapoderes, como o Judiciário independente, atacando a imprensa livre.

A tática é gradual e a estratégia é a construção do Estado total, com adesão completa, de todos e de cada um. “Se no velho Estado liberal, para ser um bom cidadão bastava respeitar as leis, agora, no Estado fascista, para não cair na ilegalidade, é necessário que todo cidadão se torne fascista”, escreve Scurati em “M - O Homem da Providência”. Num primeiro momento, elimina-se a dissidência. No outro, exige-se adesão incondicional. “Era necessário reeducar um povo, corrigir uma nação.”

Esse projeto pedagógico-despótico se constrói ao longo dos anos em que Mussolini obtém vitórias sucessivas - o acordo com o Vaticano, o esmagamento da rebelião colonial na Líbia, o enfrentamento da Máfia, o controle da imprensa, a sustentação do valor da lira diante da libra esterlina, moeda global da época. Ordem e segurança são valores supremos. Os trens andam no horário e os italianos podem dormir com portas e janelas abertas, pois os criminosos têm medo do punho duro da lei.

Por trás dessa paz dos cemitérios escondem-se os crimes fascistas, revelados por Scurati. As prisões arbitrárias e assassinatos, o genocídio de populações líbias na guerra colonial, o culto da violência e a abolição da vida pública são tolerados num país em que a verdade emana do líder e apenas a submissão é aceita.

Por ser um jogo de tudo ou nada, a ambição insustentável do poder absoluto só poderia ter um fim. Mas, durante vários anos, Mussolini manteve apoio de parte considerável da população. Intelectuais importantes, como Marinetti e D’Annunzio, foram fascistas militantes. Muitos países - dos Estados Unidos à Inglaterra - durante bom tempo viram em Mussolini uma barreira eficaz contra o perigo bolchevique. O papa Pio XI, após o Tratado de Latrão, chamou-o de “o homem da Providência” - título deste segundo volume. No meio do povo, murmuravam-se as barbaridades do regime. Mas eram coisas que só aconteciam com “os outros”, não com “as pessoas de bem”, os bons fascistas.

Essa ilusão se desmancha com o tempo, com as circunstâncias históricas, com a dura realidade imposta por um regime totalitário. Qual o custo - brutal - dessa aventura? É um pouco o que insinua a imagem final deste segundo livro. Mussolini, no auge do poder, e portanto totalmente só, desconfiado de todos, visita o lúgubre mausoléu dos mártires fascistas. Em sua imaginação, escuta o coro dos mortos, que chega não do passado, mas de um futuro iminente. O passado de crimes não passa e não pode ser enterrado, descartado ou negado. Ilumina o presente; vem do futuro, como presságio.

Como escreve Umberto Eco em seu “Fascismo Eterno”, ao comentar o discurso de Roosevelt sobre a luta contra a opressão: “Liberdade, liberação são uma tarefa que não acaba nunca”. Que seja este o nosso mote: Não esqueçam.