Bem ou mal, tudo é discutível no Brasil. Contesta-se se Gilberto Gil merece ser considerado poeta, se Fernanda Montenegro deveria ou não ocupar cadeira na ABL e se o bisturi de Paulo Niemeyer Filho é digno de sentar à cadeira deixada na instituição pelo professor Alfredo Bosi, intelectual que conseguiu ser marxista e católico ao mesmo tempo.
Goiás esteve também representado na ABL pela palavra de Bernardo Élis, autor de - entre outras obras - “O Tronco”, romance publicado em 1988. A eleição de Élis, cronista deste Diário da Manhã por décadas, ajudou a melhorar a autoestima cultural do Estado. “Das mais elevadas terras do Planalto Central, da Serra dos Pireneus, nasce um rio que corta Goiás em direção ao sul. É o Corumbá, chamado de resmungador e escachoante”, discursou o goiano, em 10 de dezembro de 75, quando se tornou efetivamente imortal de nossas letras.
Apenas por isso, como a história registrou além de nota no rodapé, já valeu a pena. Mas direcionemos, por um instante, o foco para outro lado: Jorge Amado estaria com razão quando declarou que a ABL tinha de tudo, até mesmo escritor? A julgar pelos ilustres que viraram imortais ao longo dos anos, Jorge não só acertou, como foi preciso. E a pergunta a se fazer é: o que justificaria a eleição de um Paulo Niemeyer Filho? Ou de um Roberto Marinho? Ah, ambas indicações foram mostradas à exaustão nos telejornais do plim-plim.
Não, não pode ser porque o pai do primeiro era amigo do poeta Vinícius de Moraes. O médico filho lançou, em 2020, a obra “O Labirinto do Cérebro”, na qual o neurocirurgião explica, com didatismo e fluidez textual, as curiosidades em torno do cérebro humano. Já o fundador de “O Globo”, homem de relações com o poder, se notabilizou por editoriais em que apoiava o golpe de 64, mas talvez seja isso que lhe tenha credenciado ao posto de autor “respeitável”.
Trabalho ‘suado’
Em uma conversa com DM na Pinacoteca do TJ-GO, o poeta Gabriel Nascente rememora os esforços durante a campanha para que Bernardo Élis fosse eleito imortal da ABL. Aos vinte e tantos anos, Gabriel lembra de pedir voto para Menotti Del Picchia e Jorge Amado. “Trabalhamos, trabalhamos", atesta o autor, que chegou, à época, a acompanhar Élis ao Rio para derrotar Juscelino Kubitschek no pleito - o ex-presidente era desafeto da ditadura e, segundo documentos da Comissão Nacional da Verdade, foi assassinado pelo regime.
A ABL, na visão da historiadora Maria Schincariol de Mello, em estudo consultado pela reportagem, equilibra-se entre a legitimidade inegável e, ao mesmo tempo, o seu prestígio na área da cultura. Por lá passaram, por exemplo, os escritores Machado de Assis (seu fundador), Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Dias Gomes e Lygia Fagundes Telles. Professores também foram contemplados, já se sabe, como crítica literária Cleonice Berardinelli, uma das principais estudiosas de Fernando Pessoa, falecida em fevereiro deste ano, aos 106 anos.
“Outro aspecto desta mesma face é a autoridade de suas posições institucionais e de seus membros no interior do campo literário e em relação à sociedade como um todo. Seu discutido prestígio decorre, principalmente, da proposta de pluralidade que ela defende, ou seja, a eleição de membros de fora das letras”, analisa a estudiosa, em "Consagração ou desqualificação: Jorge Amado, Rachel de Queiroz e a Academia Brasileira de Letras", no qual cita Santos Dumont, Getúlio Vargas, Marcos Maciel, Ivo Pitanguy e Nelson Pereira dos Santos como exemplos de nomes emblemáticos que se tornaram imortais, mas não possuem ligação com literatura.
Seguindo modelo parecido com o adotado pela Academia Francesa, a ABL é formada por 40 membros, dentre eles efetivos e perpétuos. Há, todavia, uma diferença para a qual vale ficar de olho: a instituição europeia aceita apenas literatos, separa duas dezenas de lugares para correspondentes estrangeiros (peruano Mario Vargas Llosa, que não escreve em francês, foi nomeado recentemente) e os imortais são escolhidos por meio de escrutínio secreto.
A ABL é presidida pelo jornalista Merval Pereira, conhecido pelos comentários políticos feitos na Globonews e no jornal “O Globo”. Desde junho de 2011, ele ocupa a cadeira 31, numa tradição de a instituição imortalizar profissionais da imprensa. Observa-se ainda que, por meio de reportagens em seus telejornais, a TV Globo se apresenta como uma espécie de guardiã da instituição e da nossa cultura. Afinal, é por aí que a banda toca de fato?
Para o escritor Ignácio de Loyola Brandão, durante entrevista quando esteve em Goiânia há cerca de dois anos, o mais importante é escrever livros. Com eles, acredita o autor, é que foi parar na ABL. Loyola Brandão afirma, no entanto, que existem muitas elucubrações em torno da vida na entidade, mas ela é boa no sentido dos relacionamentos entre pessoas que pensam o Brasil, o mundo, a cultura e o marasmo em que “nos encontramos”.
ABL por dentro
Mesmo a ABL eternizando no berço esplêndido da imortalidade gente como o filólogo Antônio Houaiss ou o romancista João Guimarães Rosa, também achou por bem colocar em panteão equivalente o político José Sarney. Mas é certo que, ao longo dos anos, a Globo exerceu domínio na chamada instituição mais antiga do Brasil, ah exerceu - melhor ainda, exerce, coloquemos o verbo no presente do indicativo. Faz mais sentido neste caso.
E, enquanto alguns procuram a glória, outros querem trabalhar pela literatura. “Não estou disputando uma obra na ABL em troca de troféu. Não procuro glória. E, em primeiro lugar, não acredito nessa estultice de posteridade. Procuro na ABL conseguir uma cadeira para que eu possa segura e solidamente trabalhar por ela e por ela trabalhar a expansão da poesia no Brasil e no mundo”, não se cansa de dizer Gabriel Nascente. Vamos discutir a ABL?