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Entenda como grafite se tornou parte do cotidiano goianiense

Prefeitura de Goiânia anuncia que viaduto da T-63, no Setor Bueno, passa por manutenção para receber galeria de arte urbana

Galeria a céu aberto: Beco da Codorna reúne obras assinadas por artistas locais e de fora - Foto: Andréia Pires/ Arquivo Galeria a céu aberto: Beco da Codorna reúne obras assinadas por artistas locais e de fora - Foto: Andréia Pires/ Arquivo

A rua resgata-nos do isolamento, reintegra-nos à humanidade, leva-nos às assembleias do cotidiano, devolve-nos a calidez do intelecto. Como flâneurs, fazemos nossas observações e, ao guardá-las nas gavetas da memória, encontramos sabedoria - à guisa das conversas nas esquinas, dos bate-papos realizados no frescor etílico dos bares, das peças montadas nos teatros, dos shows vistos. Ficamos excitados assim que encontramos a inquietude da arte.

Um mural colorido, como num jazz gráfico movido pelo improviso do pincel que faz as tintas escorrerem pelos muros, revela-se aos olhos de quem passa pela Rua 72, na esquina com a Avenida H, no Jardim Goiás. O tom é lisérgico, art pop com gênese goianiense. Lembra os traços do quadrinista Robert Crumb, mestre do underground norte-americano. São 140 metros quadrados. O Bicicleta Sem Freio, ainda bem, psicodelizou a metrópole.

Na rua 3, próximo às curvas modernistas assinadas pelo arquiteto Ruy Ohtake, as cores saturadas e os traços definidos do muralista Wes Gama brilham aos nossos olhos. O artista, nascido em Uruaçu, está com obra exposta na região em estado permanente. Quem passa por ali, inevitavelmente, é levado a refletir sobre a degradação do Cerrado, bioma que, ao lado da Mata Atlântica, foi o que mais sofreu com a desenfreada ocupação humana.

Galeria democrática

As duas galerias a céu aberto, além das obras que estão no Setor Sul, se juntarão a uma outra localizada no viaduto da Avenida T-63, no Setor Bueno, bairro nobre da Capital goiana. Para tanto, a Secretaria Municipal de Cultura (Secult), em parceria com a Secretaria Municipal de Infraestrutura (Seinfra), iniciou reforma para efetivar adequações na estrutura física do espaço para que seja possível tirar do papel o projeto Arte Urbana.

Coordenado pela Secult municipal, o projeto tem por finalidade ilustrar espaços públicos da metrópole. A ideia é levar obras artísticas para viadutos, pontos, corredores, praças e parques. Até o momento, informa a pasta, foram destinados R$ 500 mil para o projeto. O dinheiro também foi usado na revitalização realizada no Beco da Codorna, no Centro de Goiânia, bem como no Complexo Viário Jamel Cecílio e no Viaduto Íris Rezende Machado.

Na obra que leva o nome do histórico prefeito, há um retrato de Íris num dos pilares que sustentam a construção. O político sorri, acena para o público e, com o braço erguido, saúda as pessoas (sua gente) que passam pela Avenida Perimetral nos carros ou ônibus. Como um guardião da cidade que o elegeu prefeito quatro vezes, Íris está vivo a partir da função artística de registrar personagens importantes da história goianiense.

Segundo o secretário Zander Fábio, para dar início às obras no viaduto da T-63, foi necessário esperar passar o período chuvoso e aguardar a conclusão da compra dos materiais e equipamentos a serem usados. Por meio de comunicado, ele afirma que, em parceria com a Seinfra, conseguiu dar o ponta pé ao projeto. “Deve começar a receber a pintura artística no prazo máximo de 30 anos”, garante o titular da Secult municipal.

Em março último, o Diário Oficial do Município publicou texto em que informava o tamanho de cada painel: 100 metros quadrados ambos, numa área que, ao todo, possui 1,2 mil metro quadrado. Doze artistas foram selecionados. “O projeto contribui artisticamente com a estética dessas obras e colocará a arte ao alcance dos olhos de quem passa pelos locais, além de valorizar a cultura local e a arte urbana”, afirma o prefeito Rogério Cruz.

Grafite se adapta ao cotidiano de metrópole em transmutação

Às duas ou três da tarde, o silêncio dá lugar ao som do motor dos carros ali estacionados. Carros de trabalhadores que batem ponto nas imediações. O comércio, aos montes, marca presença nas imediações. Uma ou outra pessoa circula entre os grafites. O céu se mostra azul, cristalino. Com bloco de notas à mão, o repórter se aproxima do rapper Mano Brown: está de óculos escuros, cabelo aparado, sorriso tímido no canto da boca. Toma notas.

Se o grafite é um berro, como disse certa vez o poeta marginal Paulo Leminski, um grafite de Mano Brown seria o quê? Ah, talvez um berro sobre a desigualdade social, de quem nunca foi talarico e, mais do que tudo, de quem teceu um testemunho do inferno. O integrante dos Racionais foi retratado por meio do artista Fábio Gomes Trindade, goiano que já teve até obra republicada pela atriz e escritora Viola Davis no Instagram, em 2020.

Forma de arte surgida na década de 1960, o grafite relaciona-se com o underground, pois foi a voz de jovens descontentes com a Guerra do Vietnã nas grandes cidades do mundo. Eram pessoas que lutavam contra a repressão e o autoritarismo, como integrantes do movimento estudantil que deu, em 1968, numa insurreição que se tornou conhecida pelo nome de Maio de 68. Na América Latina (inclui-se o Brasil), virou a expressão contra as ditaduras militares.

Embora pesquisadores relacionem a produção atual com a de 50 anos atrás, é preciso compreender que existe, entre passado e presente, uma diferença estética. O grafite na forma atual surgiu nos anos 1970, nos Estados Unidos, e carregava uma disputa territorial por quantidade - das pessoas que espalhavam suas marcas pelos lugares - e qualidade - quem melhor criava. Foi o hip hop que ajudou a difundir pelo mundo o grafite contemporâneo.

O pesquisador Flávio de Lima Ferreira, em dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Artes Visuais (FAV), da UFG, diz que começou a ter contato com grafite quando se mudou para Goiânia, em 2005. “A partir daí acabei tendo um contato cada vez mais intenso com o mundo do grafite em várias de suas manifestações. Encontrei cidade abarrotada de pichações, bombs, stickers, lambe-lambes, que traziam colorido contrastante à publicidade”, afirma o estudioso, em “Da Codorna ao Bacião: A Construção do Grafite em Goiânia”.

“Nota-se, no caso de Goiânia, que o espaço urbano sempre está em um processo de expansão e de alteração de suas dinâmicas de povoamento, quase sempre obedecendo aos desejos do capital, o que pode gerar certo desinteresse em áreas mais antigas, em prol do interesse em regiões capazes de dar maior rentabilidade aos interessados”, conclui Flávio.

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