Paul McCartney me reata com parte considerável do meu passado. À fusão de estilos, à beleza musical, à descrição extrapalco e à relação ética com os fãs, nesta quinta-feira, 30, na Arena BRB Mané Garrincha, em Brasília, eu acrescento a gratidão. Gratidão de minha parte por apreciá-lo tocar piano, violão e o indefectível baixo Höfner, cuja silhueta ao estilo violino Stradivarius se transformou em sua marca registrada ainda naqueles tempos de Beatles, nos anos 60. E, olha só, cara: é o tipo de lembrança da qual você não irá se ver livre tão cedo.
Quem deseja apagá-la, ora? Paul integrou os Beatles, banda que colocara em pé as estruturas do pop na virada dos anos 50 para os 60. Quando John Lennon, George Harrison, Ringo Starr e ele passaram a se odiar, despiu-se de sentimentos nostálgicos e montara um novo grupo - que incluía a esposa da época, Linda, nos teclados - e se metera num ônibus para viajar pelo Reino Unido, fazendo shows emocionantes em universidades. Entre 1971 e 1979, os Wings lançaram sete discos, todos com bons desempenhos nas paradas de sucesso.
Paul se diverte na estrada. Imagine só o trabalho dele nessa empreitada: discos lendários, composições belíssimas, lados bês espetaculares. É um parque de diversão observá-lo puxando a cadeira e construindo o roteiro dos concertos. Como é dono de hits eternizados em nossos tímpanos, começa pensando que tipo de canção nos faria pagar ingresso para ouvi-lo. Algumas são óbvias, tal qual “Let It Be”, a balada gravada pelos Beatles no derradeiro disco, em 70. Uma das músicas obrigatórias de se escutar na vida, aliás.
Aí surgem também aquelas que a banda curte tocar ao vivo e, para surpreender, vêm as homenagens ou as surpresas. Um cara que foi parceiro de Lennon e conheceu Jimi Hendrix detém memórias preciosas. Quase, por exemplo, formara um supergrupo com o fantástico guitarrista de blues-rock e o mirabolante trompetista Miles Davis, que trabalhavam juntos durante a fase psicodélica do jazzista, em 69. Paul emprestaria aos dois suas linhas de baixo, ajudando-os nos arranjos e nas composições. Iria estourar, de fato. E já nasceria clássico.
Não, não é delírio da minha cabeça! Hendrix enviou ao beatle um telegrama no qual dizia estar no estúdio acompanhado por Davis. “Que tal entrar para tocar baixo? Ligue para Alan Douglas 212-5812212. Paz. Jimi Hendrix, Miles Davis e Tony Williams”, sugeriram os músicos, à espera do tão sonhado ok. Mas o assessor dos Beatles, Peter Brown, deu-lhes um banho de água fria no dia seguinte: “McCartney está de férias e vai ficar por duas semanas.” Mesmo um desencontro da vida, Paul acha importante lembrar Hendrix, cuja guitarra parece uma extensão natural do próprio corpo. Sim, me arrepiarei ouvindo “Purple Haze”.
Se o rock que abre a obra-prima hendrixiana de 67, “Are You Experienced”, é carta marcada até aqui na turnê “Got Back”, Paul se derramará em declarações apaixonadas a Nancy Shevell, esposa do músico hoje em dia. Ele dedica-lhe “My Valentine”, bela faixa que integra o repertório do disco “Kisses On The Bottom”, lançado em 2012. Seguindo nessa toada, pode ser que o artista britânico nos surpreenda com músicas de “McCartney III”, terceiro feito sob isolamento. Ao contrário dos demais, de 70 e 80, esse título da lavra ocorreu de tal forma graças à pandemia. É importante na discografia mccartneyniana.
Jamais fica excluída “Band On The Run”, faixa que nomeia o clássico disco lançado em 73 pelo Wings. Paul já declarou, em certas entrevistas, que notou na última década apreço do público por músicas desse álbum. Se é possível realizar tal comparação, “Band..” é, digamos, seu “Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band”: brinca com os sons, equilibra-se entre letras autobiográficas e tentativas sutis de mitificar-se num mundo de fantasia, aventura e surrealismo. Pode-se dizer que o compositor, mestre na arte de criar canções, é um estilista elegante brincando com as palavras enquanto busca segurar e beijar a mão da liberdade.
Liberdade
Segurando e beijando a mão da liberdade, Paul a abraça. Fora-lhe perdida pelas consequências de ter sido preso com drogas. Isso o forçou a ver a si mesmo como um fora-da-lei. Podemos dizer que há duas buscas separadas em “Band On The Run”: a de Paul para ele próprio e a de Paul na condição de ouvinte de si próprio. Ele e o disco dinamitam velhas teorias quando se percebem livres, soltos e na estrada, um sentimento peculiar ao músico naqueles primeiros anos pós-Beatles. Paul McCartney sonhava com o dia em que daria um chega pra lá na sombra beatlemaníaca que lhe impedia de decolar em novos voos.
Hoje em dia, o músico se livrou desse tipo de sentimento paralisante. Se nos anos 70 a antiga banda estava mais para pesadelo do que qualquer outra coisa, Paul percebeu dos anos 2000 pra cá outros desafios. Os Beatles tiveram sua história retratada de forma grandiosa na série “Anthology”, que possibilitou um reencontro com os antigos parceiros George Harrison e Ringo Starr, no qual os três puderam trabalhar em músicas caseiras feitas por John Lennon. Houve ainda o assombroso filme “Get Back”, filme dirigido por Peter Jackson, em 2021.
“Now and Then” é uma das pérolas deixadas por Lennon e, para nosso deleite, chegou às plataformas de streaming no final do mês passado. Já acumula 31 milhões de audições apenas no Spotify. Não por acaso, Paul McCartney cantará Beatles em Brasília: “I've Just Seen A Face”, “Got to Get You” into “My Life”, “Getting Better”, “Blackbird”, “Come Together”, “Hey Jude” e “Something”. Ainda neste ano, embasbacados, ouvimos as linhas de baixo gravadas pelo músico em “Hackney Diamonds”, último disco lançado pelos Stones.
São ingredientes pelos quais vale a pena se dirigir à pista ou às cadeiras da Arena BRB Mané Garrincha nesta quinta-feira, 30. Ouso falar até que pelos quais vale a pena viver. Mas o maior deles foi o que Paul fez na terça, 28: transformou o mítico Clube do Choro, em Brasília, no lendário pub Cavern Club, onde os Beatles ensaiavam a beatlemania. Paul McCartney não para: só de 2021 pra cá, para você ter uma ideia, veio “McCartney III” e livro de letras e outro de fotos (“1964 - Os Olhos do Furacão”). O concerto no Mané Garrincha tem sabor de despedida.
Got Back no Mané Garrincha
Quinta-feira, 30, às 20h30
Asa Norte, ao lado do Ulysses Guimarães
A partir de R$ 250
Ingressos pelo Eventim