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Folia de Reis se estende até 6 de janeiro

Nessa época, na qual marca-se nascimento de Jesus Cristo, companhias realizam peregrinação e foliões visitam devotos, que os recebem com comida e bebida

Catira: dança atinge ponto alto das celebrações na Folia de Reis - Foto: Marcus Vinícius Beck Catira: dança atinge ponto alto das celebrações na Folia de Reis - Foto: Marcus Vinícius Beck

Aquela viola deixa qualquer um embasbacado. Afinada em rio abaixo, que consiste em ter o primeiro par de cordas em ré, o segundo em si, o terceiro em sol, o quarto em ré e o quinto em sol, os dedos do músico Anísio Rodrigues da Silva, 60, apresentam o caminho rítmico do catira. Com o instrumento posicionado na altura do abdômen por uma correia, ele está com um chapéu à cabeça. E veste camisa de seda verde escura, botas amarronzadas, calças e cinto com fivela vistosa.

Desde os oito anos, Anísio exibe por aí sua habilidade artística. Considera-na uma dádiva e afirma ao DM que o professor responsável por lhe ensinar os segredos do instrumento sequer sabia ler ou escrever. Quando decidiu tocar, Anísio Rodrigues não poderia ter sido mais assertivo, pois faz alguém sensível à música parar para vê-lo por um motivo: tem feeling. Seus dedos transitam pelo braço do instrumento com uma belíssima desenvoltura.

A cada comentário realizado pela viola, o sapateado dos foliões cria compasso rítmico, ecoando a felicidade, expressando a fé católica e evocando a descontração: começa o catira. O tempo é marcado por sincronizadas palmas. Possuem certo grau de parentesco com flamenco - sobretudo as melodias, as harmonias e as estruturas das canções. Mas as semelhanças se limitam a isso, pois essa expressão artística tem origem nos povos nômades que chegaram à Espanha no século 15. Já a vista pelo repórter se origina na cultura sertaneja.

É um dos momentos mais bonitos das manifestações religiosas inseridas na Folia de Reis, evento que lembra a visita dos Reis Magos - Belchior, Gaspar e Baltazar - ao menino Jesus. Da tradição cristã, a história bíblica serviu de inspiração para a festança iniciada no dia 25 de dezembro e encerrada no Dia de Reis, 6 de janeiro. Segundo relatos históricos, o evento possui origem portuguesa e aterrissou em solo brasileiro no período colonial, já que na Península Ibérica - Espanha e Portugal - havia o costume da cantoria de porta em porta.


		Folia de Reis se estende até 6 de janeiro
Filho e mãe: Geraldo Cesario Neto, 24, e Luzia Cleide, 50, ajudam a mantém tradição viva. Foto: Jean Leal


Luzia Cleide, agricultora familiar, diz à reportagem que cresceu com a folia. Contudo, revela ter sofrido com a impossibilidade de a festança ser realizada por causa da pandemia de covid-19. A humanidade ficou enclausurada entre 2020 e 2022. “Foram dois anos sem a folia”, recorda-se Luzia, de 50 anos. “Foi uma tristeza imensa. Ficava lembrando com o meu irmão dos dias em que havia a folia, dos pousos, da cantoria, da reza, do giro e do novo pouso”, conta ela, que conversou com o DM na chácara WD, à beira da BR-070.

O repórter chegou à comunidade Caiapó por volta das 13h, na última segunda, 1°. Já ocorrera a chegada ao pouso e o café da manhã. Em Goiás, onde as celebrações fazem parte da cultura popular, há folia na zona rural e também na cidade. Mas o que não pode faltar é o agradecimento dos foliões pelo alimento. Eles cantam ao redor da mesa versos de tradição católica, documentados no Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.

“Tem uma diversidade muito grande. Na cidade, o café é em um lugar, o almoço acontece em outro e o jantar é servido numa residência diferente. Os foliões vão percorrendo a vizinhança. Qual é a Folia de Reis que prefiro? Gosto das duas - tanto a da cidade quanto a da zona rural”, afirma a professora Andréia Pires, 40. Existem até lugares em que os foliões bebem cachaça como forma de festejar, conforme relata a historiadora Juliana Marra, na dissertação de mestrado “Catira: Performance e Tradição na Dança Caipira”, defendida na Universidade Federal de Goiás, a UFG, em 2016.

Pouso

Quando o calor intenso abranda, lá pelo fim do dia, os foliões vão à casa na qual o pouso é oferecido. Lá, diz Juliana, pernoitam os instrumentos. “É exatamente neste momento, em que o grupo está se reunindo para dar início às etapas do ritual da folia de Reis, que o catira é brincado. Essa expressão, muito comumente usada pelos agentes envolvidos na tradição da folia e da catira, é bastante sugestiva, pois é exatamente isso que ela representa para os foliões em meio ao compromisso e espiritualidade acessada durante as rezas: a sociabilidade, a descontração, o aquecimento, o momento de beber cachaça”, explica.

Assim que o catira termina, começam as cantorias em devoção aos três Reis Magos. Então, é servida a janta para a comunidade presente e os foliões seguem para o giro noite adentro. Com a Bandeira dos Três Reis Santos, visitam devotos no próximo pouso, num roteiro pré-estabelecido. Cavalcante, Cidade de Goiás e Pirenópolis, onde se expressa a cultura dos povos aquilombados, e Tirantes e Ouro Preto, estes municípios históricos no estado de Minas Gerais que integraram o ciclo do ouro, se tornaram lugares conhecidos pelo Brasil como pontos em que as festas populares resistem até hoje.

Participante da Folia do Caiapó desde pequeno, o estudante de cinema Geraldo Cesario Neto, 24, que deseja filmar um doc sobre a folia, alerta para a necessidade de manter essa tradição popular viva. Ele relata que começou a participar da festa inclusive com a peregrinação noturna aos nove anos, quando sua mãe lhe deu permissão. “Andar na chuva, de noite, é marcante. São caminhos sinuosos. Não pode falar, todos ficam em silêncio profundo”, lembra, destacando que a dança catira é “muito legal”. De fato, durante o tempo em que a reportagem esteve na chácara WD, Geraldo foi um dos dançarinos mais atuantes.


		Folia de Reis se estende até 6 de janeiro
Cantoria: dona Maria Aparecida Sulino, 83, com violeiro Anísio Rodrigues da Silva, 60. Foto: Jean Leal


Juliana Marra atesta, em sua dissertação de mestrado, que a resistência caracterizou a permanência do catira como um “fato folclórico”, da mesma forma que se tornou ponto fundamental para a compreensão desse bem cultural na condição de patrimônio. “Ao considerar as falas – orais e corporais – dos atores e produtores do catira, ficou claro o quanto seus territórios e campo de atuação é marcado por relações de poder e pelas negociações que esses agentes precisam estabelecer com cultura dominante”, problematiza. Enquanto isso, aquela viola deixa qualquer um embasbacado. Qualquer um.

Fora das rotas turísticas

É certo que tanto o catira como a Folia de Reis são manifestações da cultura popular que ocorrem fora da área tombada como Patrimônio Histórico da Humanidade, na Cidade de Goiás. Lá, onde fora instituído pelos colonizadores o eixo do poder. Observa-se que a apresentação da dança no Centro Histórico, tida pela Unesco como Patrimônio da Humanidade, são bem pontuais. O catira se manteve na cidade graças à própria comunidade, que alimentou um sistema cultural de práticas, significados e sentidos. Fora da rota turística, o quilombo Alto Santana também organiza a Folia.


		Folia de Reis se estende até 6 de janeiro
Altar: imagens e Bandeira dos Três Reis evocam a fé da comunidade. Foto: Jean Leal


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