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OPINIÃO

A loucura é santa

Doracino Naves, Especial para Diário da Manhã

Todo morador de Palmelo fica doido da vida quando dizem que na cidade só tem doido. Igual aos nordestinos que não gosta de receber visitante na época da seca. O palmelino sente orgulho é quando dizem que lá é a capital espírita do mundo; fundada por Jerônimo Candinho, aluno aplicado de Eurípedes Barsanulfo. Hoje está vazia como a maioria das pequenas cidades do Brasil. A maior parte da população se mudou. Muitos nem retornam; encantados com a cidade grande. Mas a alma está presa num ponto inicial da existência.

Edgar, no Rio de Janeiro, me confessa que sonha voltar a Palmelo. Esse sonho virou obsessão ao ponto de esconder da sua mulher o dinheirinho da viagem. Não quer voltar só para ver a cidade, onde fez versos eróticos depois de espiar as meninas nuas tomando banho no córrego Caiapó. O antigo morador sabe que vai se arrepiar com a sensação do ar frio do inverno que sopra das bandas do esbarrancado. Nem se lembra do cheiro da cidade. Pois é, as cidades têm cheiro próprio guardado na memória. Quer provar, de novo, o sabor perdido da jabuticaba madura no quintal do Chiquinho Gonçalves. Existe um desejo mais intenso do que os prazeres carnais; talvez ouvir os passos das almas penadas que, em busca da luz eterna, perambulam em noites de lua cheia.

Além disso, há uma vontade maior: ser ouvido pelos fantasmas camaradas que ainda permanecem na terra a orientar os espíritos frouxos. Ser escutado em silêncio. Sem os conselhos hipócritas ou puxão de orelhas de espíritos encarnados ou desencarnados. Não quer ser julgado pelo que fez ou deixou de fazer; espírito bom não faz isso. Voltará, com certeza, para ouvir a egrégora formada pelos espíritos amigos. Que ninguém ouse dizer: “Tá vendo, não falei que você estava errado?” Ou, então, o clássico conselho: “Se eu fosse você...”

Edgar, o ausente com vontade de voltar, aprendeu na vida que a gente ama quem sabe escutar. Rubem Alves, cronista mineiro de Boa Esperança, foi mais preciso na sua quimera: “É na escuta que o amor começa. E é na não-escuta que o amor termina.”

Nosso personagem não fica doido quando dizem que em Palmelo só tem doido. Até se sente bem com isso. Gosta de doido que conversa com espíritos invisíveis, de andarilho que anda sem rumo pelas estradas; doido realmente doido. Não do doido de mentira que faz mal aos outros.

A avó e o pai dele chegaram amalucados em Palmelo. Mesmo depois que a doidura foi desalojada do corpo conservaram um quê misterioso nos trejeitos; a aura do doido é pureza de arroz cristal.

Diz Edgar que a criação é irmã da loucura. E que os grandes gênios, em sua época, foram considerados loucos.

Então, bendita seja essa loucura!

Ser palmelino é, antes de tudo, experimentar as coisas do espírito; crer em curas milagrosas; acordar com cara de cajá-manga verde; receber passe mediúnico no Centro Espírita Eurípedes Barsanulfo. Voltar em silêncio reflexivo, caminhar com pés firmes e precisos; uma garrafa de água fluida para espantar os males.

Noutro dia fui a Palmelo, depois de visitar meus netos Júlio e Gustavo, em Santos Cruz. Cheguei com a luz do sol dividindo o céu em partículas de luzes coloridas e nuvens de linho branco. O vento soprava do lado de Pires do Rio trazendo pingos de chuva gelada. Um arco-íris atravessou os vidros do carro e chegou aos meus olhos míopes.

Tão estranha é a vida na terra, no ar e no correr inexorável das águas do córrego Caiapó, hoje quase um rego d’água, que a cogitação sobre a morte é plena poesia.

O vento se enlouquece formando um redemoinho que carrega – em suas entranhas – folhas secas, penas de passarinho, cabelos retirados dos esqueletos nas sepulturas abandonadas; sem importância ao espírito.

No centro da agitação viajam os espíritos a um lugar escondido da visão dos homens.

(Doracino Naves, jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.net, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no

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