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OPINIÃO

José Ayube

José Moraes ,Especial para Opinião Pública

Zé Ayube ou apenas Ayube, para os mais próximos, fundou em 1932, na cidade de Pires do Rio-GO, o jornal O Estado de Goiaz. Em 1934, representado pelo jornalista Alfredo Nasser, participou da Segunda Assembleia de Fundação da Associação Goiana de Imprensa, para aprovação de seus Estatutos e Eleição de sua Primeira Diretoria. Pouco tempo depois “fugiu”, como se dizia, para a cidade mineira de Uberlândia-MG, levando a modesta tipografia (vários cavaletes, com caixas de tipos e uma velha impressora Lauzet Expres Paris, que imprimia duas páginas por vez, a uma velocidade de mil exemplares por hora). Aí, continuou publicando o jornal com o mesmo título, isto é, O Estado de Goiaz.

Não conheço os pormenores que o levaram a exilar-se naquela cidade mineira. Considerando, entretanto, as circunstâncias da época – ditadura estadonovista e interventoria no Estado de Goiás – e o caráter independente, polêmico e até contestador do jornalismo impresso por Ayube, pode-se concluir que a convivência, em Goiás, tornara-se impossível.

O jornal sitiou-se, inicialmente, na Rua General Osório mudando-se, depois, para a Avenida João Pinheiro, ao lado dos Correios e Telégrafos, onde em 1939 entrei a procura de trabalho. Era um grande galpão, sem nenhuma divisória, misturando-se tipografia, redação e administração. Apenas uma escrivaninha, onde Ayube escrevia, em manuscrito, revezando com seu irmão, Pedro Jonas, que cuidava da parte financeira e gerência. Nenhum outro móvel, além de uma mesinha com rodas, sobre a qual uma antiga máquina de escrever Olivett e duas cadeiras. Apesar do desconforto o jornal era frequentado, cotidianamente, por amigos e correligionários.

Tudo simples e pobre, mas o que mais me impressionou foi o próprio Ayube. Expressão de poucos amigos, cabeleira cheia e longa, lembrando o poeta Castro Alves, costeletas longas, óculos de lentes grossas, terno e gravata, um lenço enorme caindo do bolsinho do paletó. No braço, uma fina e bem trabalhada bengala. Posteriormente, descobri que usava, esporadicamente, outra, verdadeiro tacape, para as circunstâncias de risco...

Um de seus tipógrafos explicou-lhe que eu queria a vaga de “expedidor”. Observou-me sem entusiasmo. Além da pouca idade, eu era pequeno, franzino. Para minha sorte era dia de expedição e Castorino, um velho tipógrafo de cabeça já branca, dobrava pachorrento os jornais. Ayube pediu-me que o ajudasse. Era um teste. Durante algum tempo observou-me discretamente e, depois, aproximou-se e falou em tom quase brincalhão:

– Pode continuar, você vai ser meu “secretário”...

Apesar das dificuldades financeiras, das deficiências técnicas, do controle sistemático da censura estadonovista e dos preconceitos ideológicos, fez do “O Estado de Goiaz”, um dos jornais mais popular e conceituado no Triângulo Mineiro e em Goiás. A tiragem de 1500 exemplares era a maior entre os jornais do Triângulo Mineiro, batido apenas pelo antigo e conservador “Lavoura e Comércio”, de Uberaba-MG. Um terço da tiragem ficava em Minas, a maioria em Uberlândia. Em torno de mil exemplares eram destinados para Goiás, atingindo todos os seus municípios, em forma de assinaturas.

O jornal contava com vários colaboradores e correspondentes, em Goiás, entre os quais: Gelmires Reis, Francisco de Britto, Domingos Vellasco, João Luiz de Oliveira, Edson Hermano. Em Minas, prestigiosos jornalistas como Licídio Paes e João de Minas, eram constantes colaboradores.

Ayube era um jornalista sensível aos pequenos e aos grandes problemas: “Assim não há quem aguente...”, titulava matéria a respeito do mau cheiro exalado do Matadouro Municipal de Uberlândia, situado no Patrimônio, bairro mais pobre da cidade. “Tira a mão daí, Zé”, fustigava os depredadores de árvores e jardins. Fez permanente campanha contra as mazelas do jogo do bicho e as desumanas brigas de galo. O poder público sempre foi alvo de sua pena ferina e contundente.

Durante a segunda guerra mundial, diversos produtos foram racionados, entre eles a gasolina. Um proprietário de “posto”, membro de família uberlandense, importante e tradicional, fazia câmbio negro. Ayube denunciou. Foi um escândalo. O câmbio-negrista foi preso temporariamente. Um reboliço na cidade. Alguns assinantes devolveram o jornal, quase todos com um “X”, em vermelho, sobre a matéria-denúncia. O telefone tocava trazendo ameaças. Ayube, sempre impassível nestas circunstâncias, apenas trocava de bengalas. A denúncia, comprovadamente verdadeira, lhe valeu mais um processo, aumentando o número dos mesmos, nas mãos de seu defensor, o causídico Dr. Jacy de Assis, também exilado em Uberlândia, fugindo de perseguições políticas em Goiás.

Ayube fez jornalismo em defesa dos interesses da coletividade, contra a prepotência, em circunstâncias desfavoráveis, quando o país se encontrava sob regime ditatorial. Muita coisa que escreveu não chegou ao público, devido a rigorosa censura exercida sobre seu jornal. Assuntos como liberdade, democracia, anistia aos presos políticos ou críticas ao sistema e a seus mandatários, eram considerados crimes de imprensa.

As páginas do jornal, ainda em provas, eram obrigatoriamente levadas ao censor, no caso o próprio delegado de polícia. Algumas vezes confrontou a censura abertamente, deixando em branco os espaços dos textos proibidos. Essa desobediência lhe valeu muitos processos, ameaças de corte da “cota” de papel de jornal (linha d’água) e até de suspensão da publicação do jornal.

Na maioria das vezes, porém, usava sutilezas, manhas. O mais perseguido pela censura era o Editorial, que ocupava as duas primeiras colunas da terceira página, seguido de algumas curtas e apimentadas “Notas”. A segunda página, especializada em propaganda comercial, era desprezada ou mal olhada pelo censor. Disso, algumas vezes se aproveitou Ayube. Escrevia textos curtos, com títulos despistadores, solicitando aos tipógrafos que os compusessem em formato de anúncios e os colocasse entre as propagandas comerciais, ludibriando, assim, a censura.

Várias vezes, quando existia alguma matéria passível de ser censurada, mesmo com as páginas prontas para a impressão, dependendo, claro, de serem levadas à censura, Ayube atrasava, propositadamente esta iniciativa. As provas não seriam levadas no expediente normal da Delegacia mas, à noite, nas casas noturnas “Gato Preto” ou “Cobra”, frequentadas pelo Delegado. Alí, rodeado de pessoas importantes da cidade e de mulheres bonitas, o censor tornava-se displicente e liberal. Mal lia as manchetes, assinava e liberava a impressão.

Delegado Especial, como se dizia, advogado, provindo de Belo Horizonte, permaneceu muitos anos em suas funções, em Uberlândia. Era um homem ainda jovem, elegante, educado. Mas quando envolvido pelas artimanhas de Ayube, perdia a fleuma e assumia sua posição autoritária:

– “Fala para aquele “cabeludo” comparecer aqui na Delegacia...”

Eu transmitia o recado omitindo, claro, o adjetivo, ao que Ayube retrucava:

– “Manda aquele “bunda suja” ir tomar banho...”

Ayube não era de muitos sorrisos, nem pronunciava palavrões ou manifestava ódios. Mas usava com frequência a expressão “bunda suja”, quando se referia a alguém que não estimasse. Além de fundador, editor, diretor, redator, repórter, revisor, era também tipógrafo. Mantinha relacionamento sem nenhuma cerimônia, com os funcionários – Castorino, Wilson, Dely, Manoel, que ali trabalharam anos seguidos –, com os quais gostava de trocar ideias, dando-lhes liberdade para adaptar a feição gráfica do jornal, às limitadas condições técnicas da pequena e tradicional tipografia.

Juntamente com os irmãos Pedro Jonas e Dr. Jonas Ayube, todos solteiros, morava próximo ao jornal. A casa modesta e acolhedora, era dirigida pela irmã “Tia Zina”, que cuidava de tudo e de todos e, por extensão, um pouco dos tipógrafos, para quem mandava, todos os dias, um bule de café, acompanhado de deliciosos quibes.

Em 1942, pela primeira vez, depois que “fugiu” de Goiás, Ayube atravessou o Paranaíba, indo até Goiandira. Nessa cidade vivia o principal núcleo de fundadores do Partido Comunista, em Goiás. Alguns anos depois, tive conhecimento de que participara de uma reunião clandestina daquele partido que, à época tinha ramificações em Catalão, Pires do Rio, Anápolis, Jaraguá e Cidade de Goiás.

Essa viagem ficaria incógnita, não fosse um imprevisível acontecimento. De volta à Uberlândia, o “trem” de passageiros em que viajava sofreu trágico acidente, entre as cidades de Goiandira e Cumari, onde morreram dezenas de pessoas. A partir de reportagens sobre aquele lamentável acidente, desenvolveu ampla campanha contra os desmandos, a incompetência e a corrupção reinante na administração daquela ferrovia, o que levou o Governo de Goiás a demitir sua Diretoria.

No terreno da militância política clandestina, consta um fato quase folclórico, não fosse sua tintura de violência. Em Uberlândia, certa noite, um padre foi sequestrado e pichado em suas “partes” preciosas. Segundo as más línguas, referido clérigo, em suas pregações, vivia acusando os comunistas de comerem criancinhas e outros pecados, enquanto ele próprio exercia seu “canibalismo” sobre algumas de suas mais fervorosas seguidoras. Tão sacrílega pichação nunca foi devidamente esclarecida. As acusações recaíram, por um lado, sobre os comunistas, entre os quais Ayube e, por outro lado, sobre alguns maridos ciumentos...

O idealismo político e o apego ideológico, entretanto, lhe pregou algumas peças. Quando Stalin e Hitler firmaram um pacto de não agressão, o jornal passou a publicar matéria paga, difundida pela Embaixada Alemã, propagando o poderio militar alemão. Pouco tempo depois a Alemanha invadiu a URSS, criando uma situação embaraçosa para Ayube.

Quando os primeiros navios brasileiros foram afundados, por submarinos alemães, o jornal deixou de publicar a propaganda alemã, passando a propugnar pelo rompimento de relações diplomáticas com a Alemanha, pela declaração de guerra ao Eixo, pelo envio de tropas ao front e pelo esforço de guerra.

Com a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, iniciou-se um processo de enfraquecimento da ditadura. A censura passou a ser um ato apenas formal. Ayube tinha percepção das mudanças e seu jornal foi um dos primeiros do país, a defender a anistia aos presos políticos e a democratização.

Quando, em dezembro de 1944, anunciou uma viagem a várias cidades de Goiás, inclusive Goiânia, criou-se um clima de preocupação entre as pessoas com quem convivia. Mas, sensível e audacioso, percebera a hora das mudanças. Pretendia fazer parceria na publicação do jornal “A Luta”, fundado e dirigido pelo jornalista H. G. Pinto, em Anápolis-GO e, também, editar um jornal em Goiânia. “O Estado de Goiaz” fincara raízes em Uberlândia e continuaria editado naquela cidade.

Altas horas da noite de 3 de janeiro de 1945, Ayube encontrava-se no Jóquei Clube de Goiânia, com vários conhecidos, entre os quais o velho amigo e primo, Dr. Zecchi Abrão, conceituado causídico e professor na Capital. Convidado, resolveu conhecer o Lago das Rosas, onde funcionava uma boate. Caminhando pela Avenida Anhanguera, então apenas uma estrada de chão e, naturalmente envolvidos pela conversação, não perceberam a aproximação de um automóvel que demandava a mesma direção, com faróis danificados. Ayube foi colhido e arrastado vários metros, falecendo no local.

A notícia chegou em Uberlândia, como uma bomba, porém, sem pormenores. Assassinato? Mais algumas informações... Acidente encomendado? Todas as investigações, circunstâncias e envolvidos, concluíram por lamentável fatalidade, ocorrida em hora tranquila, em uma estrada deserta.

A cidade de Uberlândia paralisou-se comovida. O comércio fechou suas portas. Milhares de pessoas acorreram para prestar-lhe a última homenagem. O Poder Público concedeu-lhe nome de Rua. A terra que o acolheu passou a ser, também, seu túmulo.

O jornal “O Estado de Goiaz”, sobreviveu a seu fundador. Dirigido por Abraão Isaac Netto e depois por Jonas Ayube, continuou sendo publicado em Uberlândia, até dezembro de 1945 quando, adquirido pelo Partido Comunista, foi transferido para Goiânia, onde circulou até 1956.

Mas, esta é outra história.

O jornal “O Popular”, do dia 5 de janeiro de 1945, publicou a seguinte notícia:

“Vítima de um atropelamento morreu ontem nesta capital, o jornalista José Ayube Ontem às 8 horas da noite, mais ou menos, logo após o jantar o jornalista José Ayube, diretor do “Estado de Goiaz” em companhia de seu grande amigo e parente dr. Zecchi Abrão, saiu a passeio pelas ruas desta capital, dirigindo-se em seguida para o Lago das Rosas.

Nas imediações daquele logradouro foi porém o infeliz jornalista apanhado por uma baratinha que corria a grande velocidade arrastando-o por 10 metros. Percebendo, possivelmente, o desastre, o proprietário do carro, sr. Antonio Limiro, aumentou ainda mais a velocidade, dirigindo-se para Campinas.

Transportado imediatamente para o Instituto Médico Cirúrgico José Ayube veio a falecer no caminho, antes que lhe fossem prestados os primeiros socorros médicos”.

A notícia do passamento do sr. José Ayube causou profunda consternação em Goiânia”.

(José Moraes , tipógrafo-linotipista aposentado. [email protected])

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