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OPINIÃO

Bariani Ortencio, o Cerrado e o cinquentenário do livro “Sertão sem fim”

Corria o ano de 1965. Nele, com todas as suas gamas de amores e dores, contradições e desacertos, a vida era levada. Goiânia era uma jovem cidade, com pouco mais de trinta anos do lançamento de sua Pedra Fundamental. Neste ano, o então escritor e empresário na época, Waldomiro Bariani Ortencio, com pouco mais de 40 anos, lançava o seu livro Sertão sem fim, com o nome de W. Bariani Ortencio, pela Livraria São José, do Rio de Janeiro.

50 anos se passaram!

Intelectual reconhecido nos meios culturais goianos e brasileiros, Bariane Ortencio é um escritor múltiplo, com várias facetas. Folclorista, dicionarista, contista, romancista, compositor, poeta. Ele é isso e muito mais, tornou-se já ícone goiano. Falou Bariani, falou Goiás!

Lembra ele os campos do Cerrado, a gente de pé no chão, os cantares do povo, as danças, os pagodes, as missas, as vilinhas perdidas no sertão, o cigarrinho de palha, a pinguinha com os amigos, um arrozinho cozinhando no fogão de lenha.

Bariani Ortencio é muito amado por todos nós!

Waldomiro Bariani Ortencio nasceu em Igarapava, Estado de São Paulo em 1923. Caminha sem pressa e com saúde, para os seus 92 anos de idade. É filho de Antonio Ortencio e Josefina Bariani. Em 1938, veio para Goiânia. Foi jogador de futebol, professor de matemática, empresário. Escritor, folclorista, compositor. Membro da Academia Goiana de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de Goiás e da Comissão Goiana de Folclore. Obras: Sertão sem fim, O sertão, o rio e a terra, A cozinha goiana, Dicionário do Brasil Central, O que foi pelo sertão, Vão dos angicos, Morte sob encomenda, A fronteira, Medicina popular do Centro Oeste, Meu tio avô e o diabo, dentre outras, aliás, muitas outras; que esse homem gosta de escrever! E escreve bem!

Sua vida está mergulhada em páginas, sons, palavras, folclores, cantigas e cantares, amigos, no seu Centro Cultural no coração Geográfico de Goiânia.

E isso é vida; como cantou Francisco Petrônio: “Pois quem ama não descansa, até morrer”, nos versos antigos e esquecidos de Paraguassu. Bariani Ortencio não descansa porque ama o ideal de escrever, derramar-se em palavras e sentidos.

O Cerrado, hoje tão destruído, está inteiro na obra de Bariani. Não só em Sertão sem fim, mas em todas, praticamente.

No gênero conto é o que mais se ateve ao Cerrado e, lógico, na pesquisa do receituário goiano regional. Em seu livro O que foi pelo sertão, Ortêncio (2006, p. 30) destaca a passagem do cotidiano roceiro, em que o personagem Joaquim, homem do campo, acende o seu cigarro, pachorrentamente, no espantar das muriçocas, como faziam os homens antigos do sertão.

Faz, também, a descrição do campo e do Cerrado, das caraíbas e sucupiras, com belas imagens literárias: “Neste mês de agosto o mato fica uma beleza. As caraíbas pintam o cerrado com seus cachos de flores amarelas. A maior parte, nem folhas têm, é aquela rodeira de ouro. Por todos os lados as sucupiras pretas estão roxinhas que só paramento de semana santa.” (Ortencio, 2006, p. 152)

O ato de limpar a enxada para o trabalho, com as pedras de amolar, narra sua passagem pelas moitas de mamacadela no mato, quando pega umas frutinhas. Ao que parece, o Joaquim era um homem sossegado, lento e preguiçoso. É o jeitão sem pressa do goiano de antigamente, sem o estresse e a correria dos tempos atuais. (Ortencio, 2006, p. 30): “Joaquim, desta vez, atendeu a mulher. Acabou de enrolar o cigarrinho de palha, colocou-o atrás de uma orelha, tirou um ‘quimba’ da outra, acendeu-o com o isqueiro, e lá foi, vagaroso, baforando, espantando as muriçocas. Quase ao dobrar o cotovelo do caminho, parou no monte de pedras-de-fogo e pôs-se, pachorramente, a escolher um calhau de boa chispa, pois o seu já estava bem pequeno e o pedaço de lima velha grosava-lhe quase sempre o dedão da mão esquerda. Seguiu adiante e só parou para catar umas maminhas-cadelas que um burro velho derrubava ao coçar-se na árvore. E lá se foi o displicente, rumo à casa da comadre Maria. Apressou-se mais, pois não tardaria a escurecer, e ele sempre teve receios de andar sozinho à noite, no mato.” (Ortencio, 2006, p. 17).

Nesta mesma obra, aparece a descrição dos remédios do campo, do mato e do Cerrado e o uso do assa peixe branco e de outras plantas encontradas no campo, que o personagem Izidoro fabricava remédios como raizeiro que era: “A bronquite, a asma do velho preto Benedito, Izidoro buscava, no terreno salobro, os brotos de embaúba, e sobre os barreiros de argila, trazia os brotos de assa-peixe branco que, com a embaúba, manipulava xarope com rapadura: era um porrete, que o velho Dito se deu bem melhor com eles. Izidoro preparava também, xarope de casca de angico, casca de fruta de jatobazeiro. Com a casca do angico e do barbatimão, grandes adstringentes; curava feridas. Para o fígado e os rins, chá de folhas de cagaiteira, congonha do campo ou cá de bugre e douradinha, esta, o mate do nosso sertão.” (Ortencio, 2006, p. 29)

E continua ainda na obra a destacar sobre o ipê roxo e seu uso, as variações das flores, dos meses de floração, a caraíba e o ipê roxo: “O resto do mato é secura só, vegetação sedenta de chuva, que não deve tardar. A caraíba, o senhor sabe, é o ipê do Cerrado, do tamanho do pau terra, mas é pau e pura flor nessa quadra. E é ainda melhor que o pequizeiro para a espera de um veado. (...) Olha lá debaixo daquele capão de mato, três ipês roxos e dois amarelos, todos floridos! Ipê roxo não, aquilo é caroba, castanhola de macaco, porque ipê roxo é granfina, que só dá no mês de maio, mês das noivas, mês de Maria.” (Ortencio, 2006, p. 152).

Em seu outro livro Vão dos angicos, que contém no próprio título, características geográficas e ambientais, cerradeiras, destaca Ortencio (1966, p. 92) sobre os roceiros analfabetos das letras, mas doutores da sabedoria da roça, nas pescarias, nas caçadas de passarinhos, o uso das árvores e arbustos do Cerrado para suas aventuras como a embira, o guatambu, a perobinha, a pindaíba, a pegação de inhambus e jaós, o conhecimento das cobras. Mostra a vivência dos jovens com as artes e manhas da roça, única escola que possuíam: “Mas se os roceirinhos continuavam analfabetos, sem perspectivas de qualquer luz de instrução, eram exímios nas pegas de passarinhos de proveito, os que se comem. Dos pés de carrapichos tiravam embiras e os paus para as arapucas. Do guatambu, da perobinha ou da pindaíba, faziam os laços que atiravam para o ar as pombas juritis, as verdadeiras, as trocazes, os inhambus e as jaós. Montavam em pelo e pintavam o diabo nos lombos dos potros e das éguas. Entendiam de cobras, também. As de rabo fino, as que sobem em árvores, seguravam-nas e deixavam que se enrolassem em seus braços. As venenosas, de rabo grosso, ligeiramente despontado, pegavam-nas com os laços de cordão. No córrego ferravam, com anzóis-mosquito marca Chave e isca de minhoca, os lambaris ariscos e os piaus velhacos. Com os lituanos, curtos e grossos, minhoca também, ou isca de passarinho, pegavam bagres e mandis, melhor à noite ou quando chovia, água turva; aqueles com linha de rabo de cavalo, estes com de algodão, encerada, banhada de barbatimão.”

No outro livro Força da terra, com sugestivo título Ortencio (1974, p. 173), destaca a cor da lua, essa mesma cor se derramando sobre o Cerrado, os coqueiros, os buritis, mostra a cachoeira, o vento macio, o frio e destaca a pescaria, com todas as suas astúcias nos tempos de outrora, muito diferente da pesca profissional nos rios de agora, bem dito, os poucos rios e os poucos peixes. “A lua é amarela. O amarelo, na noite dentro, vai formando auréolas brilhantes nas árvores e coqueiros muitos, buritis. Tremeluzindo as copas, carícia de vento manso, a brisa. Ronco surdo de cachoeira, o farfalhar não se houve, tudo abafa. Mas o céu é amarelo, a lua colorindo, nuvens brancas frisando de ouro, correndo. E o friozinho da noite, cismando a gente, parece vir dos perfis das folhagens, chegando suave, mandado pelo balanço dos galhos, pra lá e pra cá, os troncos semidormidos, as copas ninando, ciciar, a cachoeira roncando. Paz selvagem.Está iscando a pindas, que de dia as piranhas e a miuçalha não deixam. Não usa o remo: vai de pé na canoa, segurando, puxando os galhos. Pela manhã volta pra recolher o peixe, sungar os anzóis, encastoar linhas, que nem sempre o surubim perde a luta. Jaú-de-cama, saipé saltador, isto é lá mais acima, junto à cachoeira, o primeiro retesado nas pedras, o segundo, lépido, nas corredeiras.”

Ainda nesta obra Ortencio destaca sobre as carobinhas roxas, planta nativa do cerrado em bela descrição: “Era o mês de janeiro e de flores silvestres. Por perto, algumas carobinhas roxas, muita flor amarela de angiquinho e muitas brancas do pau chamado jacaré. O rapaz apanhou uma braçada delas.” (Ortencio, 1974, p. 168).

Em seu outro livro de contos, Sertão sem fim, Ortencio (1965, p. 15) em vários trechos destaca sobre o cerrado, nos costumes sertanejos, na culinária, o pequi cozinhando colhido no pé por perto, no campo, cozido rapidamente, bem polpudo, bem carnudo: “O sol, assim meio em declive, mandava da Romuada pra cozinha, entre três e meia e quatro horas. Na panela de barro, refogava um arrozinho com pequi bem carnudo, apanhado ali mesmo, em frente, no cerrado. A panela chiou alto e pela casa toda rescendeu aquele cheiro gostoso de pequi. Sêo Ingrácio, então, viu que era hora de pegar o chicote e apartar os bezerros. Mas, pela janela, avistou, já chegando, a figura antipática, indesejável, do Alvarino, montado numa mula de raça. O velho estremeceu todo e inadvertidamente caiu sentado no banco comprido de tabua que tomava toda uma parede.”

Na mesma obra aparecem outras citações sobre o Cerrado, com a descrição da casinha da beira dos caminhos, no barranco, seu quintas com as plantas de horta e de remédio, pé de chuva de ouro, o pote com água fresquinha, casa de adobe, as flores e as frutas do cerrado, alcunhados de “pé de fruita”, na visão dos roceiros: “Casinha de beira de estrada, lá em cima do barranco. Casinha poética, baixinha, da altura dos seus pés de flores. Só lhe passam em altura as copas do mamoeiro da frente e das bananeiras do fundo. Em frente, pés de manjericão, de bico de papagaio, de crista de galo. Rasteiros, beijos e periquitos, cravos de defunto. Tudo isto plantado ao sabor da mão jogada, nada ordenado. Agora, o ponto máximo da vivenda bucólica é o pé de chuva-de-ouro que ela tem ao lado. O senhor já viu um pé de chuva-de-ouro, sem folhas, carregado de cachos dourados? Já pensou?! Casinha de beira de estrada onde todo mundo pede água, bebe gostoso, do pote encravado na forquilha de três pernas, na caneca de alumínio. Casinha de adobe; caiadinha de poeira, de telhas vãs. Casinha bonitinha, poética, saudável, romântica, para os que passam. Mas, pra o Limírio e os seus que moram lá dentro, o quadro é pelo avesso. Não reparam em nada disso. Os seus olhos não vêem a força da natureza, não sabem fazer poesia; nem mesmo o pé de chuva-de-ouro acham bonito: – Como chama esta árvore, sêo Limírio? – Pé de flor... E quando lhe perguntam pelas frutas do campo, do cerrado, aquelas que não são demasiadamente comuns, responde: ‘pé de fruta’.” (Ortencio , 1965, p. 76).

Em outros de seus muitos e apreciados livros, Ortencio (1958, p. 179) destaca a feitura de casas utilizando as árvores e palmeiras do Cerrado: “Plantou quatro esteios de angico-preto, fez os travamentos, encaibrou e cobriu de buriti.” Sobre o angiquinho pequeno também destacou como sendo um arbusto do Cerrado, cujas flores são amarelas: “Era o mês de janeiro e de flores silvestres. Por perto, algumas carobinhas roxas, muita flor amarela de angiquinho e muitas brancas do pau chamado jacaré.” Ortencio (1974, p.168). Ainda sobre a marmelada-do-mato que é a mesma marmelada-de-cachorro: “Pela direita deixava de lado uma moita de marmelada-do-mato, que formava um capãozinho único, sozinho naquela área.” (Ortencio, 1968, p, 82).

Em outras obras ainda refere-se ao fruto do marmeleiro e de certa qualidade de bananas, consumidas fritas: “Primeiro vêm as bananeiras, umas sessenta socas, onde se colhem nanicas, goiabinhas, maçãs, da terra, salta-velhaca, ourinha, marmelo.” (Ortencio, 1965, p. B. 36).

Ainda sobre os o uso da “guariroba ou gariroba ou gueroba, como comumente se ouve em Goiás, é o palmito amargo, espalhado profusamente em Goiás, nas terras de cultura. O coco possui uma castanha muito gostosa e usa-se pegá-lo nos currais após passar pelo aparelho digestivo do gado, que aprecia muitíssimo as polpas desses cocos, caídos debaixo das palmeiras.” (Ortencio, 1966, p. 137). Depois fala de sua colheita: “Torava, com o facão, tipo jacaré, uma guariroba e voltava pro rancho onde, bem depois, estava preparada a bóia.” Ortencio (1976, p 102).

Também sobre os pássaros comestíveis do Cerrado, destaca sobre o inhambu, pássaro (também chamado anhambu nambu ou nhambu) rabicó, marrom, dos pés e bicos vermelhos, comestível. Geralmente é encontrado nas palhadas das roças: “Do guatambu, da perobinha ou da pindaíba faziam os laços que atiravam para o ar as pombas juritis, as verdadeiras, as trocazes, os inhambus e as jaós.” Ortencio (1974, p. 9).

Em seu livro de contos Meu tio-avô e o diabo, Ortêncio (1993, p. 25) destaca sobre as plantas do cerrado, muitas utilizadas como divisas e por morrerem, capazes de criarem problemas futuros entre vizinhos de roça: “Percorreu com os novos vizinhos as divisas marcadas por gotas com água, grota sem água, pé de jatobás, jatobá do campo, jatobá do mato, angicos e baruzeiros, sucupiras e até cajueiros do cerrado, divisas móveis, danadas de boas para criar problemas futuros.”

Bariani Ortencio, o paulista mais goiano que se pode pensar. Múltiplo artista e importante cidadão de Goiás. Sua história, sua vida, suas palavras nascidas no âmago da alma traduzem, com certeza, a verdadeira essência do goiano. Em seu livro Sertão sem fim, assim como nos demais, Goiás se derrama inteiro, como um Araguaia imenso, carregado de peixes/sentidos; como se cada palavra sua, bem pescada na imaginação, fizesse vibrar, em sentimentos, diversos corações!

Parabéns, alquimista das letras! E Maktub!

(Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, graduado em Letras e Linguística pela UFG, pós-graduado em Literatura Comparada pela UFG, mestre em Literatura pela UFG, mestre em Geografia pela UFG, doutorando em Geografia pela UFG, escritor, professor e poeta - [email protected])

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