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OPINIÃO

Boi engarrafado

Minhas raízes gritam dos cafundós das minhas lembranças. O silêncio das pedras de Porto dos Barreiros – minha Atlântida perdida no borbulhar das águas do Rio Paranaíba – guardam segredos dos passantes que, em tempos sem estradas, atravessaram a divisa. Porto dos Barreiros foi a passagem das caravanas vindas do Rio Janeiro e oeste mineiro com destino a Goiás e Mato Grosso. O Rio Paranaíba se enchia de ar para a travessia das balsas que flutuavam sobre o seu leito, conduzindo, incólumes, os sonhos para a outra margem. Uberaba, no começo do século passado, já era a capital do gado Zebu.

Oh, Moisés, se o Mar Vermelho se abriu para a passagem hebreia rumo a Canaã, o Paranaíba embalou os sonhos do brasileiro rumo ao oeste do país. No mar pereceram os egípcios que desejaram frear os sonhos de uma multidão; no rio os indecisos, perdidos no meio das águas, igual boi engarrafado, não ousaram viver numa terra de sonhada felicidade. Os corajosos atravessaram o rio. Do outro lado fincaram as colunas de uma nova civilização. Conduziram suas famílias para o então novo eldorado brasileiro, Goiás, que inaugurara uma nova capital: Goiânia.

E Goiânia se tornou um anjo sem asas, leve e delicado a proteger os seus moradores com a magia que interveio nos destinos dos chegantes. E pensar que essa Goiânia metrópole começou num lugar ermo, escondida da maioria dos olhos dos humanos dispersos na terra, então com menos de três bilhões de almas. Em 2011 somos sete bilhões de terráqueos, a maioria de olhos puxados, muitos para o lado de Goiás, onde se plantando tudo dá. Nesse universo, Goiânia é apenas um ponto no mapa da humanidade, porém, já floresce aqui uma nova cultura. Quem chega agora, se não é gente boa, com o tempo se torna bom. Isso aconteceu com muitos que tropeçaram na raiz do pequizeiro. Igual a mim contam a sua história, indelével crônica da vida.

Diz a cultura popular que um homem para morrer feliz deve escrever um livro, plantar uma árvore e ter filhos. Árvores, já plantei. Filhos, tenho quatro. Livro...ainda não tive coragem para cometer esse livrocídio. Coitado do leitor. Outro dia em Pirenópolis, onde me escondo da gritaria do “sertanejo universitário”, um leitor de minhas crônicas me perguntou quando eu iria lançar um livro de crônica. Desconversei.

Num dia qualquer, talvez num futuro distante, os meus amigos em sentimentos de homenagem resolvam publicar, post-mortem, os meus escritos. Se, em vida, aparecer alguma crônica em livros é sinal da minha insanidade. Por isso adio esse dia com medo de ficar louco. Sou um pai tardio em minhas tarefas de escrever, o que faço semanalmente no DMRevista. Sim, o meu fazer literário é um filho que nasceu tardiamente. O padrinho é o Batista Custódio, meu compadre. Sou chique, né? Esse filho eterno grita no silêncio do concreto da cidade, retirando do cristal da alma um pouco de luz.

Essa inacabável obra – a de escrever – deve me acompanhar por toda a vida; por isso será eterna na minha mania de melhorar e aperfeiçoar as minhas histórias. Sou um pai tardio e aprendiz de escritor. Nem sei se vou aprender com tempo, pois escrever bem é um dom. No amadurecer da escrita quero ser igual ao menino que chupa manga e limpa a boca nas costas das mãos; natural na sintonia do verbo que se expressa à memória e dos dedos que materializa o pensamento.

Pensamento bom é música aos ouvidos atentos. Qual Orfeu, na lendária viagem do Argos, que tirava de sua lira a melodia para animar os heróis exaustos que se moviam ao ritmo das notas musicais.

Minhas lembranças gravadas no tempo mergulham nas águas do Rio Paranaíba, aos acordes de uma bela canção. E gritam sacudindo os alicerces do meu mundo.

(Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.net, escreve aos sábados no DMRevista)

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