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OPINIÃO

Francisca, de Estrela do Sul

Leonardo Teixeira,Especial para Diário da Manhã

O texto de hoje me foi narrado pela minha mãe. É sobre a história da mãe dela: Francisca ficou órfã aos dois anos, num casarão assobradado, onde mourejaram seus pais. Ele era trabalhador, honesto; a mãe dela, riquíssima, caridosa, etc. Os comentários da época ésão que o casal possuía terras, garimpos, gado e negócios que extrapolavam a pequena cidade. O pai faleceu com indigestão aguda após misturar coalhada com araticum. A mãe, que já sofria de gastrite e úlcera, não suportou 40 dias após a morte do marido. Francisca, a única herdeira de tudo, ficou sem nada.

Um tio paterno, agregado da fazenda, foi o tutor e distribui os bens para si e para os primos, deixando Francisca sem nada. Depois disso ela vai para a casa de outro tio, em Araxá. O percurso é feito a cavalo. Foi uma verdadeira tragédia, pois Francisca só tinha dois anos e estava muito doente.

Aos quatro anos muda-se pela segunda vez, para residir com outro tio, que era garimpeiro e, por isso, nunca estava em casa. Foi a segunda tragédia, porque até os 16 anos convive com a esposa desse tio, totalmente desequilibrada. Tinha frequentes acessos de loucura e não deixava Francisca dormir à noite, para não ficar acordada sozinha. Desde tenra idade passou a fazer o serviço de casa. Lavava roupa sem sabão, porque a tia não permitia o uso dele. Também não admitia que a sobrinha do marido mostrasse os lindos cabelos em nenhuma circunstância, sendo cobertos com um pano.

Aos 16 anos esse tio percebe que Francisca precisa usufruir do seu patrimônio, já que os filhos do seu tutor estavam estudando nos melhores colégios. Levou-a de volta à sua casa. Encontrou um ambiente ainda mais hostil e por lá ficou mais cinco anos trabalhando como escrava. Todos os dias carregava água de longa distância para encher muitos tonéis; varria, arrumava, lavava, cozinhava. No final do dia, exausta, pensava: “Preciso de um trabalho mais fino.” Almejando sair daquela situação, pensou ingressar num convento, mas, sem estudo ou dinheiro, lá também só faria serviço pesado.

Apareceu Lindolfo, rapaz inteligente, de boa família, viajado e bem falante que enamorou-se dela. Pediu-a em casamento. Ela achou que seria a solução. Ele recebeu uma boa herança e comprou um curtume (com uma confortável sede) instalado quase dentro da cidade. Ela recebeu também a dela: pequenina gleba de terra, que fazia divisa com o curtume.

Lindolfo argumentou o erro do acerto e perguntou se ela não queria entrar na justiça, para reaver o que era dela. Francisca admoestou: “Seria um escândalo, vivi sem nada até hoje. Não farei isso.” Alojados no curtume por seis anos, tiveram sempre convivência conflituosa. Casa grande para cuidar, três filhas pequenas, lavar, passar, cozinhar, sempre sozinha. O marido sempre a passear e a reclamar. Vida árdua, amenizada pela presença semanal do sogro, que sempre reprimia as falhas do filho.

O marido se sentiu pressionado e passou a fazer projetos de mudança para Goiás. O sogro não aprovou, mas Francisca acabou cedendo às pressões. Chegaram a Goiânia em 1950. Compraram fazenda, muito gado, casas, etc. Ele tinha esperança de um futuro melhor. Ele foi alfaiate e seus instrumentos de trabalho podem ser vistos no Memorial do Cerrado da PUC-GO.

Os anos se passaram, as ausências continuaram. Lindolfo foi vendendo o patrimônio e uma ira maior tomou conta dele. O dinheiro acabou, veio a doença, sumiram os amigos e Francisca sempre cuidou dele, da casa e da família, na mesma incansável labuta, desejando uma vida mais digna.

Enterrou dignamente o marido. Todos os anos manda flores para seu túmulo. Hoje Francisca completaria 93 anos se o câncer não a tivesse levado para longe de nós. Ela continua sendo parâmetro para a família. Ela, sem perceber, nos ensinava os valores reais da vida, sem nunca reclamar das coisas, para os que têm privilégio de sua presença. Só completou o curso primário, mas ganhava de muitos PHDs deste mundo por sua capacidade de administrar muito bem a sua casa com a parca aposentadoria que recebia. Fazia de sua casinha, em Bonfinópolis, a pequena parcela aconchegante do paraíso. Quem conviveu com ela atestou seu despojamento, suas atitudes sempre cordatas. Falava pouco, agia muito e sempre com sabedoria, imitando seu homônimo masculino, o de Assis. A sua bênção, vó Francisca! O céu ganhou há quase um ano essa pessoa especial, serena e dócil. Mas ela permanece viva em nossas lembranças e corações! Até a próxima página!

(Leonardo Teixeira, escritor)

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