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Kalunga: origens e significados (final)

Martiniano J. Silva Especial para Opiniãopública

Do termo multilinguístico kalunga, que encerra idéia de grandeza, imensidão, designando Deus, o mar, a morte, – o vocábulo kalunga (Deus), do verbo oku-lunga (ser esperto, inteligente), encontra-se no dialeto dos Ambóse em outros grupos vizinhos.  O prefixo kA aparece aqui sem a função diminutiva usual, sua característica. Antes, pelo contrário, impõe-se como uma afirmação de coisa importante, grande, valiosa. Para os umbundos “Ceu é céu, kalunga é kalunga (...). Céu é a morada de Nzambi, kalunga o lugar para onde Kalunga a Ngobe leva as pessoas que vem buscar. No Brasil o ícone antropomorfo  (o iteque, a estatueta, representativa de qualquer entidade divinizada, passou a se chamar calaunga. E daí o termo se estendeu às acepções já descritas, mais propriamente  de “boneco pequeno” à ajudante de caminhão de carga”.

É ainda árvore cuja raiz é indicada no tratamento de males do estômago, provavelmente o mesmo que calumba. Personagem mitológico afro-brasileiro, alcançando o substantivo calungagem, em sentido pejorativo, identificando os cheios de macaquice (eis o racismo contra a natureza ou “ecológico”), trejeito, requebros, graçola: coisa ridícula, desprezível, sem importância, sobretudo o indivíduo preto.

Aliás, há uma certa confusão no significado da palavra kalunga com  (k) e calunga com (c), que apesar do mesmo som, possuem sentidos totalmente diferentes: Kalunga -  ligada às suas crenças religiosas, mundo dos ancestrais, culto aos antepassados, pois deles vinha a sua força; Calunga – coisa pequena  ou insignificante; modo de dizer “negros”, considerados inferiores; pessoa ilustre, importante; não se podendo esquecer que calunga é, também, entre os calungas do nordeste goiano, o nome de um vão de serra, de uma planta, simaba ferrigínea – e o do lugar onde ela nasce e cresce, perto do córrego do mesmo nome, onde a terra é considerada sagrada e nunca seca. “Boa de plantar alimentos para toda a vida”.

No Dicionário do Brasil Central: subsídios à filologia (1983), alentado estudo filológico de âmbito regional, Bariani Ortêncio vê calunga como uma negra pequena e o verbo “calungar”, inexistente  nos dicionários Aurélio e Houaiss, no sentido de caluniar; Para ele, valendo-se do texto literário do escritor Mário Rizério Leite, calungueiro é o caluniador, o que mostra  que não é só o residente em Calunga. No Dicionário da terra e da gente do Brasil (1961),  de Bernardino José de Souza, calunga designa  negro em Santa Catarina e em Goiás, conforme assinala Couto de Magalhães. No mais, em parte, repete a significação já demonstrada.

Em Fantoches (1932), enfeixando vários contos, em conteúdo e linguagem adequados ao teatro infantil, Érico Veríssimo descreve as bonecas calungas, características dos maracatus nordestinos, mesmo que marionetes, sombrinhas (lanterna mágica), na magia simpática do envoltamento onde são a presença simbólica da vítima nos processos do feitiço catimbó, muambas, coisa-feita, canjerê, no plano universal e milenar. No regionalismo cearense (Dicionário de termos populares (1959), Florival Serraine registra calunga  – afora outros sentidos aludidos – como indivíduo de aspecto desajeitado.

Já no Dicionário de Vocábulos Brasileiros (1956), Beaurepaire-Rohan, embora redefinindo algumas definições, calunga já é um homônimo com três significações diferentes, na África ocidental portuguesa. Ora é nome do mar, ora o de um rio afluente de Capororo; e, finalmente, um título de fidalguia na Jinga, conforme os autores Capello e Ivens.

No Dicionário Aurélio (1999), também definindo os outros sentidos já referenciados, somando 14  deles, calunga é ainda fetiche de divindade  secundária do culto banto, a quem se atribui poder sobrenatural e a quem se venera e se obedece; indivíduo preto em Goiás e Santa Catarina; calungueira é embarcação de pesca, semelhante à garoupeira, bengula, no Rio de Janeiro; calungueiro no mesmo estado, é o pescador de pargo. No Dicionário Houaiss (2001), onde os significados tomados pelo vocábulo já são 19, com conteúdo ampliado, além dos citados, “calunga” é também molho de mudas de arroz, pessoa da raça negra no sentido genérico; pessoa que se veste ou se enfeita de modo exagerado, ridículo; companheiro próximo, fiel; figura humana ou de animal, feita de pano, madeira, barro ou outro material, mormente de pequeno tamanho. Designação a diversas árvores e arbustos dos gêneros Simaruba e Simaba, incluídos no gênero Quassia, da família das simarubáceas, não esquecendo a árvore (“Simaba  ferrugínea”, nativa do Brasil, de casca e raízes tônicas e flores em panículas terminais, mais comum em Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e Goiás; nem do arbusto de até cinco metros  (”Simaba glandulifera”), também nativo do Brasil, com realce no Rio de janeiro, dotado de casca tônica e outras  distinções da medicina  popular de que o segmento social negro costuma ser mestre.

No clássico Dicionário do Folclore Brasileiro (1972), de Luis da Câmara Cascudo, embora mantendo certa semelhança com vários significados, calunga é boneca, figurinha de pano, madeira, osso, metal; desenho representando a forma humana ou animal. Rapaz auxiliar nas carroças e caminhões automóveis; o mesmo que lambão. Nome vulgar dos peixes pagrus. Nos maracatus do Recife, os calungas são duas bonecas (às vezes, uma única)). Dom Henrique Dobna Clara, que vão nas mãos dançantes das negras e recebem as espórtulas dos admiradores. No idioma quioco vale dizer mar, e aparece nessa acepção nos cantos de macumba e candomblés cariocas e baianos, dedicados aos santos d’água. Em quimbundo é tratamento de pessoa ilustre, de homem nobre. Reitera o significado Morte, o Inferno, o Oceano, Senhor (título de respeito), acrescentando exclamação de surpresa e de encanto.

Eis aí, de modo incompleto, alguns sentidos tomados pelo vocábulo Kalunga-calunga, vendo-se que o mais difícil é o primeiro passo. Roma não se fez num dia.

(Martiniano J. Silva, escritor, advogado, membro do movimento Negro Unificado  (MNU), da Academia Goiana de Letras e Letras e Artes de Mineiros, IHG-GO, UBE-GO, AGI, mestre em história social pela UFG, professor universitário, articulista do DM - [email protected]))

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