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OPINIÃO

Minhas lembranças de José J. Veiga

Alaor Barbosa Especial para Opiniãopública

Conheci José J. Veiga acho que no segundo semestre de 1959, no Rio de Janeiro, na sala da redação do suplemento literário do Jornal do Brasil, ali na Avenida Rio Branco 110, quarto andar. Ele tinha recém-publicado o seu primeiro livro, de contos, Os cavalinhos de Platiplanto, e acho que apareceu por lá para conversar com o escritor e crítico Assis Brasil, uma espécie de secretário do Suplemento, que em um dos seus artigos semanais  havia saudado com bastante entusiasmo a sua estreia literária, recém-acontecida, com o livro de contos Os cavalinhos de Platiplanto. Notei logo que José J. Veiga fazia questão de andar muito bem trajado: terno e gravata, com muito alinho e apuro, e o rosto sem barba (não me lembro se glabro). Reparei  também na sua fala baixa e comedida, mas articulada com um quase imperceptível sorriso de simplicidade e simpatia. Acho que foi a ele que apliquei pela primeira vez o pitoresco e raramente empregado adjetivo loução. Ele era um homem elegante e loução.

Não me lembro de tê-lo visto outra vez no Rio antes da minha volta para Goiás em 1964. Mas me recordo de que daquele primeiro e talvez único encontro ficou não digo uma boa amizade, dada a não ocorrência de encontros pessoais, mas uma especial consideração dele a mim. Digo isso porque em 1962 eu pedi a ele, mediante uma carta de apresentação, que desse oportunidade, no Departamento de Traduções da revista Seleções do Reader’s Digest, que ele dirigia, a um amigo meu, capixaba, que queria se tornar tradutor profissional. Veiga acolheu com muito boa-vontade esse meu amigo, que se tornou, com o passar do tempo, um produtivo tradutor.

Se eu não tivesse lido ainda, foi logo depois de conhecer José J. Veiga em pessoa que eu li Os cavalinhos de Platiplanto. Os contos me encantaram pela saborosa linguagem goiana, que eu conhecia muito bem, e pela marcante presença de personagens meninos, protagonistas de situações com que, em minha infância em Morrinhos, me familiarizara bastante. Claro que não todas as situações, pois algumas delas são muito absurdas, inverossímeis, oníricas ou de pesadelo. Fiquei com a sensação de ter achado um autor muito original, que reproduzia com veracidade e poesia a vida de uma pequena cidade do interior de Goiás e, com ela, a gostosa e pura linguagem do povo de Goiás, com a sua extraordinária riqueza expressional, em considerável parte herdada do período quinhentista da língua portuguesa, trazida que foi pelos colonizadores e imigrantes lusitanos. Durante muitos anos, o conto que me ficou mais bem gravado na memória e que eu proclamei imediatamente legítima e pura obra-prima foi “Roupa no coradouro”. Uma das narrativas mais pungentes da literatura universal. Me lembro muito de que com essa minha opinião, e com o mesmo entusiasmo e veemência, concordava Jesus de Aquino Jayme, grande poeta e ficcionista,  um grande admirador dos contos de José Veiga, e que era filho de Pirenópolis, cidade vizinha de Corumbá.

Relevante notar que Os cavalinhos de Platiplanto contém a gênese de outras criações que vieram depois em breves intervalos. O romance A hora dos ruminantes, por exemplo, que o autor classificou de fábula, se acha bastante antecipado, com a sua absurdez contada com absoluta naturalidade, nos contos “A usina atrás do morro”, “Era só brincadeira”, “Os do outro lado”, “Fronteira”, “Professor Pulchério”, “A Invernada do Sossego”, “A espingarda do Rei da Síria” (no qual já se aparece o nome do lugarejo central da ficção de Veiga, Manarairema).

Em 1968, residindo em Morrinhos, eu programei lançar em Goiânia, no Bazar Oió, meu livro Confissões de Goiás. Convidei, por carta, José Veiga para ser uma espécie de padrinho do lançamento. Ele me respondeu acho que por telefone, com muita atenção, mas me ponderou que não poderia sair do Rio na ocasião marcada para o lançamento.

Em 1971, provavelmente no mês de maio (tenho um exemplar do seu livro A máquina extraviada com dedicatória a mim escrita em Goiânia e datada desse mês), topei Veiga, por acaso, no centro de Goiânia, na Avenida Goiás. Ele me contou que estava chegando de Corumbá, aonde fora pela primeira vez depois de uma ausência acho que de quarenta e um anos. Promovi uma entrevista dele à imprensa na sala da diretoria da empresa da qual eu era diretor. Na entrevista, lembro que ele afirmou, com bom-humor, que reencontrara Corumbá tal como a deixara ao sair. Consta que depois desse retorno ele passou a vir a Corumbá todos os anos. Durante essa sua estada em Goiânia, eu o levei à casa de Jesus de Aquino Jayme, e ambos conversaram com muito entusiasmo. De 1971 em diante, José Veiga se habituou a me remeter os livros novos que publicava, com dedicatória atenciosa.

Acho que no fim dos anos de 1970 ou início dos de 1980 um grupo de escritores de Goiânia ofereceu a Veiga um jantar de homenagem. Foi na Churrascaria Vera Cruz, na esquina da Rua 3 com a Avenida Araguaia. Eu naturalmente participei. Veiga ficou alguns dias em Goiânia, e almoçamos (ou jantamos?), ele, Antônio José de Moura e eu, no restaurante do João Bennio no Setor Marista. À mesa, ele me surpreendeu com algumas opiniões políticas que eu não sabia que ele tivesse e com a afirmação, que me pareceu um tanto exagerada, de que, aos sessenta e seis anos de idade, já era um macróbio. (Se ele tinha sessenta e seis anos, essa conversa ocorreu mesmo em 1981).

Em 1994, durante uma pequena temporada que passei no Rio,  reencontrei José Veiga na Biblioteca Nacional, durante uma singela cerimônia de inauguração de uma exposição, não me recordo de quê. Em 1996, dezembro, lancei dois livros na Livraria Agir, no Rio, na Rua México, em uma noite-de-autógrafos: lá por tantas horas, recebi um atencioso telefonema do Veiga para justificar sua ausência – estava doente – e me cumprimentar pelo lançamento.

José Jacinto Veiga nasceu na zona rural de Corumbá (depois, em 1942 ou 1943, redenominada Corumbá de Goiás, por causa de uma lei federal que proibiu dois ou mais nomes de cidades iguais) no dia 2 de fevereiro de 1915. Filho de um pedreiro. Veiga um dia me disse, com bom-humor, que havia nascido, para evitar o risco de magoar uma das duas cidades historicamente rivais, em uma serra equidistante de Corumbá e de Pirenópolis: bem na divisa entre uma e outra.

É frequente as pessoas associarem os nomes de José J. Veiga e Bernardo Élis principalmente por serem ambos goianos e por terem nascido no mesmo município e no mesmo ano. É presumível que os dois se conheceram na infância, pois Corumbá tinha menos de mil habitantes nos anos de 1920. Pelo modo bastante carinhoso e parecia que íntimo com que Bernardo Élis se referia a José J. Veiga, ou eles conviveram na infância em Corumbá ou na juventude em Goiás Velha, para onde ambos se se mudaram mais ou menos na mesma ocasião.

Em Goiás ele estudou no tradicional Liceu, um dos estabelecimentos de ensino público mais antigos do Brasil, fundado ainda no Império.  Em 1935 transferiu-se para o Rio de Janeiro. Contou-me ele que, no Rio, atravessou uma experiência marcante: a de jogar. Ganhou bastante dinheiro jogando em cassinos. Diplomou-se em Direito em 1941 na Faculdade Nacional de Direito. Trabalhou como locutor na Rádio BBC de Londres de 1945 a 1950.  De volta ao Brasil, trabalhou na revista Seleções do Reader’s Digest durante muito tempo como diretor do departamento de traduções. Seu último emprego foi na Fundação Getúlio Vargas, no setor de editoria.

José Veiga estreou em livro já com quarenta e quatro anos de idade. Os cavalinhos de Platiplanto havia sido classificado, acho que em segundo lugar, em um concurso literário, e foi editado, com alguns erros gráficos graves no texto, por uma editora principiante do Rio, a qual me parece que não sobreviveu a essa primeira publicação.

Os livros de ficção de José Veiga que vieram, sucessivos, em breves intervalos, depois de Os cavalinhos de Platiplanto, são os seguintes: A hora dos ruminantes, romance (que ele classificou de “uma fábula”); de 1966;  A máquina extraviada, contos, de 1968; Sombras de reis barbudos, romance, de 1972; Os pecados da tribo, romance, de 1976; De jogos e festas, novelas, de 1980; Aquele mundo de Vasabarros, romance, de 1982; A casca da serpente, romance, de 1989.

As histórias contadas por José Jacinto Veiga nos seus livros passam em lugares fictícios, com nomes estranhos, inusitados, estrambóticos, o que acontece também aos personagens. Retratam com perfeito realismo, até que em alguns deles comecem a acontecer coisas muito estranhas e inverossímeis (em um, “Tia Zi rezando”, ocorrem ambiguidades não explicadas ),  a vida de  pequenas comunidades brasileiras do interior, sempre uma, sempre a mesma, Manarairema, ainda que em alguns contos o nome não seja explicitado. Tudo revela e atesta a realidade interiorana: a linguagem dos narradores (em geral fictícios, distintos do autor, e alguns, meninos ainda), o ambiente natural e social, os costumes.  Quem conhece, sabe que aquilo é Goiás puro, flagrado com verdade e fidelidade, exceto, repito, nas situações e acontecimentos absurdos que gratuitamente ocorrem e sem nenhuma razão cessam de ocorrer após decorrido algum tempo.

Conversando um dia com Bernardo Élis, em sua casa, no Setor Universitário em Goiânia, em 1969, sobre a ficção de José J. Veiga, eu afirmei não entender bem como foi que ele inventou os ingredientes absurdos de alguns dos seus contos. É um tanto incompreensível, eu afirmei. E Bernardo, prontamente: “Não para quem conhece Corumbá. Corumbá é daquele jeitinho, é aquilo mesmo”. E Bernardo sorriu do próprio paradoxo e da surpresa que me causava.

(Alaor Barbosa, jornalista, escritor, advogado)

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