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OPINIÃO

Nos labirintos de um velho tabu

Pouco explorado na literatura contemporânea, o tema do suicídio mereceu uma abordagem ficcional e ao mesmo tempo reflexiva no mais novo livro de Micheliny Verunschk. Com Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida (Ed. Patuá, 192 pgs, 2014, R$ 30), a escritora pernambucana radicada em São Paula marca em alto nível sua estreia em romance. Autora, dentre outros, de Geografia Íntima do Deserto (Ed. Landy, SP, 2003) e A Cartografia da Noite (Ed. Lumme, SP, 2010), doutoranda em Comunicação e Semiótica e mestre em Literatura e Crítica Literário (PUC-SP), na esteira de um tema tão complexo e enfrentado como tabu religioso, seu enredo mergulha na questão da santidade e outras inquietações existenciais, ainda que na voz de seu narrador “O profundo das coisas não está na pauta do dia. De nenhum dia.”

Entre as figuras de uma santa suicida e um papa, a narrativa se desenvolve numa estrutura entrecortada por ilações e reflexões em torno de temas diversos, enviesando de certa maneira para o ensaio, o que confere ao romance uma característica híbrida, em que ficção, invenção, memória e teoria flertam em perfeita simbiose.

Verunschk traz para seu dèbut na narrativa longa a sua habilidade na contenção formal, peculiaridade já percebida em sua poesia econômica e certeira, recursos formais com que instrumentaliza uma comunicação eficaz ao traçar trajetória de uma personagem que, apesar da santidade, carrega os dramas e dilemas da condição existencial do ser.

Em seu processo criativo, o narrador extravasa sua onisciência ao retratar em chave questionadora, a vida e os percalços da santa, mapeando, de forma idiossincrática, os temas ligados à nossa própria condição e aos dilemas do mundo contemporâneo. Tanto na sua visão pessoal quanto no de Teresa, presente está um discurso inquieto sobre temas emergentes na vida social e individual, desde, por exemplo. o papel da mulher a uma crítica aberta à idade da mídia e aos seus tentáculos avassaladores e lesivos.

Num mesmo diapasão, o repertório da linguagem oscilando entre metáforas e referenciais filosóficos, o tema do suicídio de Teresa abre espaço para um diálogo com outros autores, artes, ciências e mitologias, sem nenhum vezo de arrivismo intelectual ou pedantismo acadêmico. Muito pelo contrário, isso remete ao texto um sutil frescor estilístico.

E apesar da advertência na própria obra de que “o leitor deve achar cansativo esse labirinto de Creta”, a literatura foi buscar na ficção uma maneira de cartografar as razões de nossos naufrágios, catapultando o leitor para compreender o insondável dessa geografia íntima e desértica da natureza humana. Assim,  autora encontrou o ponto de equilíbrio entre a necessidade de expropriar a visão moralista e condenatória dos beatos e a aceitação do suicídio como atavismo do próprio ser, como desabafa o narrador extenuado: “Pensam os arautos do Senhor que num mundo em que reinasse o livre-arbítrio de fato, Deus não teria mais qualquer utilidade. Num mundo em que homens e mulheres pudessem, sem culpas ou danações, se apoderar de suas vidas e mortes, Deus seria condenado ao vazio, como um velho que esclerosa e vai sendo despido, graciosamente, e aos poucos, do respeito grave com que era considerado quando em uso da razão.”

(Ronaldo Cagiano, escritor, reside em São Paulo)

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