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OPINIÃO

O césio e as questões das memórias

O imaginário construído pela visão oficial, que neste trabalho possui a representação nos discursos governamental e midiático, apresentam-se, em diversos momentos, sob uma crosta de neutralidade, objetividade e imparcialidade que seriam pretensamente a bem da coletividade, mas que, no mais das vezes, revelam-se de frágil e contraditório conteúdo ao ser confrontado com os fatos e submetidos a uma análise criteriosa. A crítica é fundamentada em dados concretos, cujo sentido se coloca em posição diametralmente oposta àquela do que denominamos “discurso oficial” sobre o acidente com o césio 137.

Apesar de o acidente com o césio 137 ter completos vinte e sete anos, em setembro de 2014, as medidas de segurança relativas ao manuseio parecem pouco eficazes, bem como o transporte e destinação dos rejeitos corroboram a tese de ineficácia no que se fez até este nefasto jubileu, como pode ser consubstanciado no acontecimento que redundou no desaparecimento de um carro com uma cápsula radioativa no porta-malas, no início do ano.

Acima de tudo, trata-se de um tema extremamente técnico e de difícil assimilação por parte dos jornalistas não-especializados e ainda mais por parte da população, que, em parte devido a isto, tende a “comprar gato por lebre”, aceitando tudo o que é dito sobre o césio sem questionar, quando o assunto vem rotulado de “científico”. Ou ignorá-lo, tornando-o propício a cair no esquecimento e, sem a memória histórica, voltar a ser repetido, fato bem descrito por Paul Ricouer, no livro “A memória, a história, o esquecimento ”.

Fazendo um contraponto ao imaginário construído pela visão oficial, abrimos um parêntese para falar de ética, que, sendo fruto de reflexão, permaneceria, por este prisma, em segundo plano, não existindo uma ação reflexiva sobre nossos atos. Contudo, este caráter reflexivo, mesmo pré-existente, não pode ser dirigido, como um veículo de nossa consciência, significando uma imposição de nossos pontos de vista sobre os dos outros, hierarquizando os outros como subalternos.

A propósito, afirma Luiz Martins: “O que pode parecer de bom tom, aqui, pode ser considerado de mau gosto alhures e vice-versa. Isto tem a ver até com os costumes culinários (doce ou salgado, quente ou frio), quanto mais, com relação a assuntos, tais como: casamento (monogamia, poligamia), dote (o pai da noiva paga a festa), dádiva (o visitante tem de trazer presentes), etc. Existem mesmo os códigos religiosos, os códigos de honra e maneiras sobre uma infinidade de atividades e posturas públicas (era estranho para os nossos índios que as mulheres brancas não vivessem nuas, como elas, em pleno trópico)(...).” O contra ponto que pretendemos percorrer é este: o da visão democrática do tema, como forma de comparação a uma visão determinista, prescritiva e autoritária, ainda que revestida de uma forma palatável.

Com relação às medidas de segurança tomadas para se evitar outro acidente, o discurso que envolve o pós-evento, possui diversas facetas e nossa tese centra-se na hipótese de que apesar de a mídia, inclusive a internacional, divulgar bastante o assunto, chegando a praticamente exauri-lo, dessa exaustão midiática pouco restou na memória coletiva e social que pudesse criar massa crítica no sentido de se evitar outro semelhante àquele. Pelo contrário, parece que esta massificação criou uma espécie de rejeição ao tema, e como resultante, este faz agora parte daquele conjunto de temas tabus, cuja abordagem deve ser evitada a todo custo e se for inevitável, esta abordagem deve ser superficial e ligeira, afastando imediatamente o mal estar provocado pelo assunto. Esta constatação é perceptível, inclusive na academia, que, em alguns meios, consideram o tema “muito batido” e incapaz de gerar novos resultados.

Fatos relativamente recentes remetendo direta ou indiretamente ao assunto, tais como episódios envolvendo manipulações incorretas de material radioativo – o que pode causar novo acidente –, o debate sobre a destinação do resíduo depositado em Abadia de Goiás ou o lixo atômico gerado nas usinas Angra I e II (em oposição à retomada pelo governo brasileiro, de planos de construção de novas usinas nucleares), o acidente com a usina de Fukushima, no Japão, gerando perdas humanas e materiais incríveis, são incapazes de levantar o véu de silêncio que se abate sobre o acidente radioativo goiano, só aberto quando em meio à “comemorações” a propósito daquela data fatídica.

Quando mencionado hoje em dia, o acidente é relembrado de forma repetitiva e quase sempre sob um “ângulo oficial”, não acrescentando nenhum fato novo, ou de alerta, exceção feita quando se dá voz às vítimas, mas apenas para vocalizar o descuido com que são tratadas no sistema público de saúde, aliás, como de resto é o tratamento “normal” ofertado à totalidade da população, que enfrenta problemas como falta de atendimento ambulatorial e de vagas em hospitais para tratamentos especializados das sequelas originadas no acidente.

A definição do problema passa por desenvolver um marco legal que propicie a formulação, implementação e execução de uma política pública com o objetivo de preparar o cenário para o correto manuseio, transporte, e destinação de rejeitos radioativos. Já existe uma política-espelho semelhante na destinação dos resíduos sólidos aprovada em Brasília.

Por fim, lançamos algumas questões:

Será que outro acidente semelhante não seria possível? Como estão depositados os resíduos provenientes do acidente com o césio 137 em Abadia de Goiás, na Região Metropolitana de Goiânia, em um local distante apenas 18 quilômetros de Goiânia, em uma região hoje com um grande adensamento populacional? São verdadeiras as ilações de que o manejo do material radioativo em geral no país não teve alteração significativa após o acidente?

A nosso ver, as lições do fato histórico em que se constituiu o acidente com o césio 137 em Goiânia, em 1987, foram olvidadas e, portanto, criam-se novamente as condições materiais ideais à sua reprodução, agora como evento além de trágico, farsesco, fruto do descaso das pessoas responsáveis desde à época até os dias atuais. No plano nacional, coloca-se a questão de como são manipulados e de onde estão sendo e serão depositados dejetos radioativos originários dos usos de equipamentos que fazem uso destes elementos perniciosos e, principalmente, os provenientes das usinas nucleares em operação – que sofrem paralisações operacionais constantes, como uma que ocorre neste momento em Angra dos Reis – RJ.

Finalmente, a pergunta central que fica é: como serão controladas a meia dúzia de usinas, ainda em projeto, previstas para serem construídas na região nordeste do Brasil, e os demais equipamentos e produtos radioativos existentes e a serem produzidos cada vez em maior quantidade, em meio a essa tradição e permanência histórica do esquecimento como fio condutor da história brasileira?

(Geraldo da Costa Júnior, 50, jornalista formado pela UFG, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e faz mestrado em História, cultura e poder, pela Puc-GO)

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