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OPINIÃO

Alguns anos vividos em Itabira

“Alguns anos, vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira (onde há) Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. Hoje Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!”

(Drummond in Confidência do Itabirano, 1962)

Desde meus tempos de professor de Literatura e Gramática da Língua Portuguesa, sou pego de assalto por questões que envolvem a fala e a escrita, embora não fosse com tanta intensidade quanto era com as questões que cercavam a vida da pessoa dos poetas.

Um desses tantos momentos foi quando recebi na escola uma gostosa visita de Bariani Ortêncio que surpreendeu a todos ao se revelar paulista. Num tom de decepção, um aluno me abordou e disparou: “Professor, por que os grandes poetas que existem são paulistas ou cariocas como o Drummond!? Drummond era carioca, não era?”

Incomodado com a já subtendida questão de ninguém associar Bernardo Élis a Corumbá de Goiás, lembrei-me que, de fato, quem passa pela Orla de Copacabana, no Rio de Janeiro, pode encontrar Carlos Drummond de Andrade por ali sentado, de pernas cruzadas, caprichosamente de costas para o mar; imagino que, com a cabeça em Itabira e as vistas em Minas, atendendo aos apelos de seu conterrâneo Milton Nascimento que adverte que “ficar de frente para o mar, de costas para o Brasil, não vai fazer desse lugar um bom País”.

Atordoado por essa lembrança, naquela oportunidade, aprendi a ser um brilhante aluno ao ser olhado pela contramão desse olhar de Drummond e tive os olhos abertos para mais questões: isso que tanto “dói” no coração do discreto “gauche” com relação a sua cidade natal, aconteceu apenas em Itabira? Os poetas de hoje são tratados pelo povo de suas terras natais com merecido respeito? Ou são rechaçados com a mesma violência que a Academia Brasileira de Letras depreciou Quintana para agradar políticos?

Atualmente, me deparei mais uma vez com Drummond. Desta feita, no teatro, numa peça que promove uma surpreendente conversa entre o ilustre itabirano e mais quatro outros artífices da palavra, dentre os quais, Fernando Pessoa (como anfitrião), Clarice Lispector e Cora Coralina, todos já consagrados, e a proeminente Claudia Machado, de Palmeiras de Goiás.

Obviamente que, diante da questão de Drummond e a gente de sua Itabira com “oitenta por cento de ferro na alma”, não me contive em buscar informações de como é o trato de Palmeiras de Goiás para com seus poetas.

Esperançoso no que encontraria, fui confrontado com a ignóbil realidade de que Itabira pode ser reencontrada ali, em terras tão antigas quanto a “Vila Boa de Goyaz”. Assustado, percebi que se na terra mineira há oitenta por cento de ferro nas almas, para surpresa de meus olhos e testemunho, na terra do Tempo Novo, há uma gente com alma cem por cento de pedra.

Os poucos ditos filhos daquela cidade demonstram fazer questão de desconhecer que Palmeiras de Goiás tem seus causos e casos com Minas Gerais e que surge do que há de velado na Rua do Segredo uma escritora cuja obra ganha corpo para inaugurar novo gênero textual chamado “Poesia proseada”, além de inéditos elementos de escrita e semântica que, por sua vez, tocarão as cátedras da literatura com a mesma devoção com que os sinos vindos de Uberaba declararam, por anos a fio, que as terras do Alemão pertenciam a São Sebastião.

Claudia Machado é a estrada entre Minas e Goiás, quiçá uma das garrafas recheadas de ouro, centenariamente guardadas por Jonas Alemão nas entranhas da terra.

Entretanto, no mesmo ato de desespero sedento de garimpeiros, o povo palmeirense parece viver à busca de ouro de tolo, escarafunchando a vida alheia e, perdidos em picuinhas, quando não em politiquices, tomam seus poetas por promoters, numa velada articulação eufemística-universitária que em português claro e popular não evitaria a palavra prostituta. Apenas cumprem a velha sina das academias, como tão bem vaticinou Drummond? A saber, “coroar com igual zelo o talento e a ausência dele?!”

A gente de Palmeiras, que exibe pedra n’alma como quem exibe joias preciosas no pescoço, confirma a triste tese (dura realidade) de que os interiores no Brasil guardam “línguas viperinas”, expondo, por exemplo, a nudez que menos interessa de Ana Bretas e excomungando Cora Coralina todas as vezes que ela aparece tomada de amor no leito do Rio Vermelho.

A imortalidade que conta mesmo, oxalá seja a imortalidade de tantos passarinhos a formar um bando alegretense, vencendo em contínuo voo a segunda morte e àqueles que sempre passarão. E Crônus nos dirá um dia o quanto Claudia Machado é, na literatura, apesar do sobrenome, filha do amor de Drummond e Cora. E o quanto sua obra, diferente do que tem aparecido por aqui desde Bernardo Élis, se desprende do regional, resgatando o que há de universal na memória, inclusive, dessa Palmeiras de Goiás que, ao lado de Itabira e tantos outros interiores, insiste em ser “apenas um retrato na parede”. Como se os grandes poetas e os grandes líderes só pudessem haver no Rio de Janeiro ou em São Paulo, ou no passado dessa gente desmemoriada para quem, resumindo a ópera, só tenho a dizer:  “promoter” é a mãe!

(Cris Martins, psicanalista, linguista, artista plástico e ator)

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