A poeira não baixava. Os grãos vermelhos de areia danavam em entrar pelas narinas, incomodando a respiração. Não era o único alvo. A música sertaneja comia pelos alto falantes como um zumbi esfomeado por cérebros frescos. E o Rodrigo, já um tanto mamado pela “marvada”, foi obrigado pela polícia a deixar o veículo quietinho.
– Quero ver vocês me tirarem daqui.
– Melhor o senhor descer.
– Qual a acusação?
– O senhor estava realizando manobras arriscadas em via pública, colocando a sua vida e a dos demais em risco. Vamos apreender o seu carro.
– Meu carro? O cacete que vão.
– Sinto muito, senhor. Desça do veículo.
– Vocês podem me prender. O carro não tem culpa de nada. O responsável sou eu. Mas quero ver se tem macho aqui que me prende.
O clima quente foi ficando mais turvo. Não apenas a névoa de poeira que perturbava a vista: duas viaturas da polícia cercaram o Rodrigo e já deram voz de prisão. Por conta da pinga nos miolos do sujeito, os policiais estavam de cacete em mãos. Qualquer atitude mais agressiva e o sujeito seria amaciado como bife de marmita.
O negócio é que os companheiros de cachaça do Rodrigo não seriam omissos ante a ameaça de o amigo ser levado ao pote. O Jorge, já torto de tanta cana, lembrou que tinha um negócio guardado no bolso que poderia dar um grau na situação.
Meses atrás, o Jorge havia ficado com uma carteirinha de estudante do curso de Direito, que pertencia ao Marco Antônio. Como a data de validade do documento havia expirado, e Marco Antônio já era advogado formado, Jorge botou aquele negócio no bolso para barulhar mulheres incautas. Se muito, o Jorge tinha o ensino básico, mas sua lábia deixaria juristas experimentados um tanto embasbacados com sua desenvoltura.
Os policiais já fecharam o tempo em torno do Rodrigo. Foram-lhe apertando os punhos com força. O cidadão resistia à prisão. Dizia que não tinha valente que o levasse em cana porque essa, na verdade, já tinha sido toda bebida. Até que um sargento, cansado da palhaçada, armou o cassetete para alisar o peão. Nisso, veio o Jorge.
– Pode parar aí, seu polícia!
– O elemento está resistindo à prisão.
– O elemento é meu cliente.
– Seu cliente? Vocês são apenas dois bêbados sem eira nem beira.
– Não diga isso, doutor polícia.
– Mostre os documentos, então.
Não se sabe se foi a pouca claridade. Ou mesmo falta de preparo. O Jorge sacou a carteirinha do bolso. Detalhe: o documento estava em nome e com foto do Marco Antônio, indicava ser registro apenas de estudante de Direito de uma universidade goiana. A data de validade já havia caducado. Sob todos os efeitos, aquele pedaço de papel e círculo na água eram a mesma coisa.
– Desculpe, doutor Marco Antônio.
– Pode me chamar de doutor Jorge. Meus amigos me chamam de Jorge. E eu o considero um amigo, sargento.
– Tudo bem, doutor Jorge.
– Libera o Rodrigo. O senhor não pode recolher o carro dele sem mandato. Onde ficam as garantias constitucionais? O direito à liberdade? O senhor pode ser denunciado por abuso de poder...
– Desculpe, doutor Jorge.
– Aceito suas desculpas, agora libere o meu cliente.
– Não posso, doutor. Ele estava dando cavalo de pau por toda a cidade. Tenho de multá-lo e prender o carro.
– Não o carro. Basta dar a multa. A gente dirige e o leva de volta para Jandaia.
Mas o Rodrigo não ia levar aquilo na boa. Valente, mandou uns nomes bem cabeludos na escuta dos policiais. Arrotou brabura, disse que ia quebrar tudo. Aí, nem teve jeito para o “doutor” Jorge. Rodrigo dormiu no pote.
Dia seguinte, o “doutor” foi resgatar seu “cliente” da delegacia pública. O Rodrigo estava brabo.
– Pagaram a fiança? Eu comi um sanduíche, bebi uma coca e fumei um cigarro. Mas estou sem dinheiro.
– Pagamos tudo.
– Vocês são amigos da onça. Deixaram que eu dormisse aqui.
– A gente ia fazer o quê? Você estava alterado...
(Victor Hugo Lopes, jornalista)