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OPINIÃO

Carmo Bernardes me ensinou a sabedoria dos bichos (I)

Meu grande ídolo, Carmo Bernardes, que foi impecavelmente retratado aqui por Bento Fleury (“Os cem anos do doutor do sertão”, edição de 25/03/2015), trouxe-me um bando de inimigos quando eu escrevia no “Jornal de Minas”, em Belo Horizonte, nos anos 70. Na época, eu já lia Carmo e brincava com ele (tudo por carta, que telefone ainda andava meio vasqueiro) dizendo que sua cara era escrito um xerente, talvez de tanto fazer acampamento no Tocantins, desfrutando das pescarias no Araguaia, que até o inspirara a escrever “Jângala – o complexo Araguaia”, um trabalho de fôlego sobre a biodiversidade de lá.

Dizia eu que por conta dele eu granjeara uns inimigos lá nas alterosas, onde eu entremeava crônicas e crítica literária, na “Coluna do Liberato”, seis vezes por semana. Certo dia, em 1973, Carmo me mandou pelo correio um exemplar do seu mais recente livro, “Jurubatuba”, romance publicado no ano anterior. Eu, que já lera tudo que ele até então escrevera (“Vidamundo”, “Rememórias”, “Rememórias Dois” e “Reçaga”), já recebi do carteiro abrindo o pacote e lendo a orelha e a contracapa, ávido para devorar o conteúdo, o que fiz em pouquíssimo tempo.

Tão logo acabei de ler, ousei publicar na minha coluna que Carmo Bernardes estava acima de Guimarães Rosa em termos de regionalismo, pois este criara neologismos, mas seu linguajar era mais voltado para a elite, enquanto o nosso homem da Macambira usava o linguajar tirado da boca do povo, e não um neologismo criado, como o regionalista de Cordisburgo. Minha opinião foi como cutucar uma caixa de marimbondos no meio literário em que eu convivia, e a mineirada, com justificável bairrismo, queria até que eu voltasse atrás, botando nosso Carmo atrás de Guimarães Rosa. Mas saí de Minas, voltando para Goiás, sem me desopiniar acerca dos dois regionalistas. E tão admirador fiquei do nosso “doutor do sertão”, que quase afundei a estrada de BH pra Goiânia só pra conversar com ele. E tenho pelo menos quatro ou cinco obras de forte sotaque bernardiano. Numa dessas visitas, ele me entronizou no Diário da Manhã, quando ainda estava na 24 de Outubro, tendo como editor-geral Washington Novaes, e passei vários anos publicando minhas “caraminholas”, como Carmo dizia, numa coluna em que revezávamos ele, João Bênio, Oscar Dias  e eu..

Observador minucioso da natureza, ele me ensinou, pessoalmente ou através de suas obras, coisas que fui anotando, principalmente no comportamento dos animais.

Os animais, ao contrário do que se pensa, na sua luta pela sobrevivência, tudo observam, prestando atenção a tudo que os cerca, demonstrando que muitas vezes superam o homem na esperteza.

Às vezes, a sucuri pega um leitão pequeno, e o grito deste faz com que a mãe venha socorrê-lo; então, larga o leitão e agarra a porca, que é maior. A sucuri, para não ser abocanhada pelo jacaré, morde-o na tábua do pescoço e, em segundos, enrodilha-se em seu corpo, garroteando-o até à morte.

A piranha, ao atacar um peixe, morde-o na parte de baixo e na barbatana, para que, com o desequilíbrio, este perca as forças e seja dominado.

O cachorro, ao acuar uma onça no chão, nunca se aproxima dela afoitamente, a não ser que seja novato e inexperiente; por prudência, muda de posição frequentemente, sacudindo o rabo insistentemente para os lados e para cima, a fim de detectar possíveis obstáculos (cipós, varas etc.) que estão na sua retaguarda, pois, no caso de um súbito ataque da onça, já sabe onde deve recuar e por onde fugir com rapidez e segurança.

Se o porco for castrado e pegar bicheira, enterra-se na lama, ficando só com a parte dianteira de fora; assim, as larvas das moscas não podem respirar e morrem. O bem-te-vi geralmente faz seu ninho perto de uma colmeia, pois assim não faltará comida para seus filhotes.

Durante forte ventania, as aves só podem pousar contra o vento, pois do contrário desequilibram-se e arriscam-se não alcançar o pouso seguro.

O camaleão, ao ser atacado por um cachorro, costuma deixar-lhe na boca um pedaço da cauda; assim, consegue fugir; quanto à cauda, com pouco tempo se regenera.

A anta, ao ser agarrada pela onça, adentra pelos lugares onde o mato é mais fechado, por onde vai roçando-se e espremendo-se, arrebentando cipós, quebrando vaquetas e varas, a fim de arrancá-la das costas, o que quase sempre acontece.

Os quenquéns (tetéus) cantam festivamente nas noites de luar, mas mantêm-se silenciosos nas noites escuras, para não atraírem as corujas, jacurutus e outros predadores que enxergam à noite.

O pica-pau e outras aves que costumam cavar seus ninhos em troncos de árvore na posição vertical procuram evitar a chuva e o frio; por isso, essa entrada não fica nem na direção leste nem nordeste, de onde geralmente vêm as chuvas.

A cutia, quando perseguida por cachorros, corre em sentido reto, em espiral e em zigue-zague, e em dado momento roda várias vezes em uma pequena área e prossegue a corrida à procura de um buraco; seus movimentos costumam confundir os perseguidores novatos e inexperientes.

O pirarucu muda a cor das escamas conforme a cor da água, seja para fugir do homem, seja para aproximar-se de suas presas. Muitas vezes, pratica a letissimulação, ou seja, finge estar morto no fundo do rio; nesse estado, o pescador toca-o com a ponta do arpão ou de uma vara pontuda, sem que ele se manifeste, fazendo o homem crer tratar-se de um grande tronco. O mesmo acontece com a raposa e a onça, quando exaustas ou feridas, e logo que se recuperam, aproveitam-se de momentânea distração de seus caçadores e empreendem fuga.

Como o espaço de jornal é escasso, vou complementar na próxima vez, mas ouso discordar do ilustrado Bento Fleury: Carmo Bernardes não foi um dos nomes mais expressivos da literatura sobre o Cerrado. Na minha acanhada opinião, foi o mais expressivo.

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, escritor, jurista, historiador e advogado. [email protected])

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