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OPINIÃO

Uma crítica aos médicos: estão HIPER-MEDICALIZANDO nossas crianças com problemas na escola?

Uma colega médica escreve: Marcelo eu sou cardiologista e a neuropediatra do Caps (centro psicológico do governo) às vezes solicita avaliação. Esta semana tive um caso interessante encaminhado para avaliação cardiológica de um menino na sétima série com “déficit de aprendizado”, não acompanha a turma , e “burro”, só que na sua idade de 12 anos ele é completamente normal ! O que está acontecendo ?o sistema de ensino não pode “reprovar” e os professores verdadeiros desistiram de ensinar , os pais confiam que a escola “ensina” e o mesmo vai passando de ano sem aprender o básico, aí na sétima série ele tem deficiência???? Mas do quê? De ensino básico????

O adolescente vem sendo aprovado, mas não aprendeu, e depois ele é taxado de deficiente de aprendizado só pq não aprendeu o básico , na verdade a falha e do sistema, e ele como vc sabe é normal, só que tem o briozonho e até sente vergonha.... Agora um adolescente normal ser taxado de “deficiente” porque foi aprovado sem aprender???? Aonde estamos?

Gostaria que você, como psiquiatra, abordasse essa relação, porque isso é caso de caps, neuropediatra, cardio ou de ensino deficiciente?

Me revoltou, me deu pena! O menino é apenas “burro”, passou de ano como manda o sistema...

Ou seja, o ensino deficiente está causando déficit de aprenzidado, parando em caps, psicólogos, neuropediatra e depois o coitado e “deficiente”. Me Deus do céu! Pode? Está relação está acontecendo muito! Burros de ensino seno chamados de deficientes de aprendizado..., pode????

Fiquei muito triste e desanimada vendo um jovem normal sendo taxado com “defeito de aprendizado”; virou déficit mental?

Gostaria que você, como tem o dom, explanasse essas situações, cada vez mais frequente: adolescentes higidos com “déficit de aprendizado” sendo tratados no Caps.

Vou tentar simplificar bastante a resposta para ser breve. Na psiquiatria infantil (isto é uma especialidade reconhecida, apesar de desconhecida) a gente separa basicamente os seguintes tipos de problemas que afetam o aprendizado: 1- problemas não-primariamente cognitivos, p.ex., criança depressiva, ansiosa, bipolar. 2- crianças com hiperatividade, cujo deficit atencional prejudica o aprendizado. 3- crianças com déficit global de inteligencia (oligofrenia). 4- crianças com déficits localizados de aprendizado, que são crianças com inteligencia normal mas que têm problemas com leitura, escrita, matemática, psicomotricidade, etc (as chamadas "disfasias, dispraxias, discalculias, disgnosias, etc). 5- crianças com “psicoses infantis”, transtorno global do desenvolvimento, aspeger, esquizofrenia, Kanner, Landau, Kleffner, Heller, X fragil, Rett (são nomes das doenças). A separação disto tudo é extremamente dificil, geralmente só consegue ser feita por quem tem formação específica em psiquiatria infantil, e muito boa (alguns psiquiatras infantis não têm formação específica, não receberam nem teoria nem prática hospitalar,  em transtornos de aprendizado). Tais crianças, em países decentes, França por exemplo, onde eu estudei e trabalhei, são vistas em centros denominados “médico-psico-pedagógicos”, onde recebem diagnósticos profundíssimos de seus problemas, são tratados dos problemas mais graves e estes centros têm interação com as escolas, por meio de serviços chamados médico-pedagógicos , dos quais o mais organizado é o de Genebra, onde tive oportunidade de trabalhar também. O ideal é que o paciente receba um diagnostico médico por parte de um psiquiatra infantil e este trabalhe em conjunto com o resto da equipe multidisciplinar (pedagogas, fonoaudiologas, psicólogas, educadores físicos, etc) para a implementação do projeto terapêutico traçado pelo médico especialista. Só este tipo de profissional, no âmbito médico, ou com conhecimentos/treinamentos congêneres, tem conhecimentos suficientes de patologia psiquiátrica, junto com neuropsicologia, para poder traçar um programa terapêutico adequado. Como deu para se ver acima, é assunto muito complexo. No Brasil a bagunça é total, estas crianças dificilmente são vistas por um especialista (psiquiatria da infância), aí ficam em escolas normais, onde vão apenas passando de ano, e quando muito vão a alguma instituição -  pode ser  Caps, como você falou, ou outras - onde com “uma sessão de psicóloga por semana” o impacto sobre o transtorno específico do desenvolvimento escolar será pífio ou inexistente... O Governo, em seu coitadismo , em sua politicagem “antidiscriminação”, em seus cabides-de-emprego-currais-eleitorais-que-não-querem-resolver-nada-mesmo, faz absurdos, por exemplo mandam que crianças com grandes problemas de aprendizagem fiquem em salas lotadas, com professores que não tem a menor ideia do que estas crianças têm, não têm o menor apoio técnico ou recursos pedagógicos, para lidar com elas, etc. Em muitos casos, as pessoas leigas, sem formação / conhecimento em psiquiatria infantil veem estas crianças “normais” com grandes problemas de aprendizado e julgam que a “culpa é da escola”, ou julgam que os médicos é que estão querendo ganhar dinheiro, vender remédio para multinacionais, etc (existe até um movimento nacional no Brasil, apoiado pelo Governo, capitaneado por órgãos de psicologia, para dizer que os “médicos estão medicalizando os problemas de aprendizado para ganhar dinheiro”). É claro que pode, sim, haver tudo isto, pode ter médico que quer ganhar dinheiro, pode ter escola ruim, etc, mas não podemos colocar tudo no mesmo saco. Um de meus filhos mesmo, que teve um ligeiríssimo atraso lexico-gráfico, decorrente de uma ligeiríssima disfasia, foi mandado para “a psicóloga e para a fono” porque “não aprendia”. A escola não tinha o menor comprometimento com ele e bastou que eu e a mãe dele ficássemos com ele umas cinco tarde para que ele pegasse o gancho da alfabetização... Ou seja, as escolas é que estão, de fato, em muitos casos , “hiper-psicologizando” estes casos que deveriam ser resolvidos pedagogicamente , e não psicologicamente. Eu digo “hiper-psicologizando”, e não “hiper-medicalizando”, porque, mais uma vez, os antimédicos colocam no colo do médico um problema que não é deles, pois, hoje, no Brasil, em cada 10 crianças com problemas de aprendizado (reais ou gerados pela escola), nove são encaminhados para psicólogo, e um para psiquiatra infantil (uma especialidade que, como eu disse no início, praticamente “não existe” para a sociedade e nem para os médicos). Portanto, para finalizar, eu responderia o seguinte: para dizer com propriedade se a criança de fato está com um problema pedagógico (escola ruim) ou patológico (transtorno de aprendizado) isto só poderia ser decidido por um especialista em psiquiatria infantil, e mesmo assim não é qualquer especialista pois muitos não recebem formação/treinamento em distúrbios de aprendizado. Na próxima terça continuo discorrendo sobre transtornos de aprendizagem numa perspectiva da psiquiatria infantil.

(Marcelo Caixeta, médico, especializado em Psiquiatria Infantil pela Universidade de Paris XI, Le Kremlin-Bicêtre)

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