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Ursulino, o cronicontista magistral

Acaba de me chegar às mãos, com outros trabalhos seus, o Idílio na Serra da Figura, acervo de 14 trabalhos, incluindo contos e crônicas magnificamente talhados, com a leveza de quem sabe escrever, incluindo breve nota sobre o autor, Ursulino Leão. Como se fora Prefácio, uma carta de Almeida Fiscer, datada de junho/1969, originariamente do Jornal de Letras e reproduzido  em O Popular, onde o missivista se refere às xilogravuras de Maria Guilhermina, e à capa de Dalel. Como não poderia deixa de ser, a dedicatória: “Chama-se Lena, esse lume azul que arde sem cessar nas sarças do céu”/ “Aceso por Deus, parece uma flor ou nesga do  mar.” Depois da esposa amada, o filho inolvidável, que a foice da morte tão cedo ceifou: “In memoriam: Thomaz Ernesto Petrillo Leão.”

Dos contos/crônicas, destaco a novela Pouso Antigo, com que o celebrado autor abre o livro. Essa novela é um primor de mistério, desde o começo, até o epílogo. Trata-se, inicialmente, de uma narrativa que começa “na Estrada Real do Sertão, à margem direita do Rio Turvo”, onde “havia um pouso bastante frequentado”, o qual, “quando  virou lugarejo, pegou o nome de Pouso Antigo que passou ao arraial subseqüente e se transferiu à vila posterior”, permanecendo quando a vila foi elevada à categoria de cidade. A Estrada Real do Sertão começava em Salvador, “ultrapassava Villa Boa, e terminava na fronteira de Mato Grosso com a Bolívia” (pág. 15). Nesse recanto de mundo, “certa ocasião, um homem, que viajava a passeio com sua mulher e dois filhos adolescentes, desarreou nesse lugar. E todos, unidos e felizes, se regalaram com as dádivas do sítio, banhos salutares, peixe à farta e a proteção do furo”.

Pois bem. Na “manhã seguinte, ao buscar a tropa, o viajante não encontrou o burro que carregava os utensílios da cozinha e a bagagem”. O chefe daquela família bateu o pé e decidiu somente prosseguir viagem depois que localizasse o burro, o que jamais aconteceria. No dia seguinte, o viajante deu por fala de um dos cavalos; e, noutro dia, do outro cavalo. A despeito de a esposa instar para que todos fossem embora, pois aquilo lhe parecia um local mal-assombrado, o chefe daquela família especial manteve a decisão de somente retomar a viagem depois de esclarecer o enigma. Até que o próprio chefe da excursão desapareceu de vez, deixando ainda mais atônitos a esposa e os dois filhos do casal.

Decorridos dois anos, a esposa, talvez já viúva a esta altura, propôs aos filhos permanecerem naquele local, dedicarem-se ao plantio de arroz, milho, feijão, e outras leguminosas. Em lugar do rancho, surgiu um sobrado bem edificado, futura morada de uma bela mulher, cabelos “mais pretos que as asas da graúna”, como diria José de Alencar, descrevendo um de seus memoráveis personagens, personagem, neste conto denominado Isabel Maldonado. Isabel, descendente daquele misterioso viajante, iniciou o Curso de Medicina, que interrompeu para se casar, malogrado casório, eis que o noivo não compareceu à solenidade, provocando dolorosa frustração. Desse curso apenas levou um bisturi lavrado em ouro puro. Esse bisturi seria o instrumento de uma tragédia muito bem urdida.

Outro conto de singular enredo é João de Moura, o adventício que chegou à casa da viúva com três filhas, prontas para casar. Das três, João de Moura escolheu a primogênita, Aleluia, com quem ele, realmente, se casaria, indo morar em Baliza, no Nordeste do Estado de Goiás, com quem teria três filhos: o mais velho seria prefeito de Baliza; o do meio, rico empresário de Barra do Garça, e uma moça, a caçula, casar-se-ia com um juiz de Direito, em Mato Grosso, promovido por merecimento ao cargo de desembargador do Tribunal de Justiça .

Um outro conto interessante é O Forasteiro, odontólogo que, hospedando-se no Hotel Cardoso, possivelmente de Anápolis, quem sabe à Rua Manoel D’Abadia, Centro, singularizara-se por alguns traços: “Na pensão, concordara com o preço da mensalidade, sem nada objetar. Mas declarou logo suas exigências: No café, às sete, um ovo quente com uma pitadinha de canela; almoço, ao meio-dia, pontualmente; companheiro no quarto e à mesa, em hipótese nenhuma.” (pág. 39). Outro personagem notável é “Dona Orminda”, a presumível  governanta da Fazenda ‘Jenipapo’, viúva solitária, cujas “mãos negras de um vento brando tinham acabado de alisar os meus cabelos”.

Existe a ‘Verônica’, “com fama de mulher bonita, cabelo na venta, viúva na casa dos trinta, ninguém lhe defere a mesura de uma Dona...”

“A morte do fazendeiro aconteceu numa esplêndida manhã em que, com dois companheiros, iniciava uma derrubada para aumentar sua lavoura de café. Picado por uma cascavel, não durou nem três horas”. Sem outras fontes de renda, aceitou a proposta de um vizinho para alugar-lhe o carro de bois, mas sem candeeiro, pois ela mesma o seria. Para melhorar suas juntas de boi, Verônica comprou mais dois bois do doutor Mário Caiado, em Pouso Alto. Esses novos bois se chamavam Sagitário e Capricórnio. “Posteriormente, em Bomfim, onde foram  transportando uma carga de café destinada ao Arcebispo Dom Emanuel, adquiriram mais dois bois e mais outro carro. Por coincidência, também de um chefe político de larga fama que havia chegado à vice-presidência do Estado. Os bois se chamavam Amazonas e Paraná, nomes que Verônica adorou” (pág. 63). Acredito que esse carro de boi, de puro bálsamo, além de ser uma obra de arte, conta com a proteção de Deus, é uma relíquia. E, pra mim, também é um ninho de saudades, uma colmeia de doces lembranças” (pág.66).

Em Primeira Travessura, Ursulino insere na estória a sua família: os filhos Paulo e Thomaz, e a sempre lembrada Lena, a musa inspiradora de toda a sua rica existência.

Por derradeiro, “Brabeza”, em que Ursulino registra que “surgiu na Colônia do Uvá uma notícia que vai passando de boca em boca: decidido a acabar com a brabeza de suas fazendas, Totó Caiado dá a metade das reses, proveniente desse rebanho selvagem, que lhe foram entregues”. Aqui, o centro da estória não é o olímpico Totó Caiado, que dominou por décadas o cenário político do Estado de Goiás, mas o herói Brabeza, impenetrável a qualquer sentimentalismo, mesmo diante daquele inimaginável suicídio de Cândida, a filha querida, que o inadmissível preconceito abateu.

Ursulino, tanto nas crônicas, como nas novelas e contos, reafirma, dia a dia, um escritor que se aprimora na leveza da forma e no insuspeitável do conteúdo, deixando a narrativa cada vez mais intrigante.

(Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ, e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 - E-mail [email protected])

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