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OPINIÃO

A bisneta de minha cegonha

Não sei como aconteceu, mas desde pequenino minha mãe dizia que foi uma cegonha que me deixou lá pelas bandas da Fazenda São Domingos dos Olhos D’água. E lá, antes de me tornar adolescente, eu fui paparicado por toda a família e depois meus pais mudaram para a cidade de Morrinhos. Mais crescidinho, fiquei sabendo que uma senhora tinha ajudado minha mãe durante o parto. Bem, se teve parteira, então elas mentiram para mim dizendo que uma cegonha tinha me trazido num voo alado, esquisito, mas, mesmo assim, insistiam que a aquela ave me deixou lá, bem bonito, sobre um colchão e lençol com cheiros de jasmim. Eu em tudo acreditava. Depois passei a entender que o meu mundo realmente era esse e muito bem cuidado. De lá para cá, entre trancos e barrancos, já se passaram décadas desde que saí do útero da minha mãe, e não do bico da cegonha como me contaram, tempo que me abstenho de contar. Num certo dia, já bem grandinho e como era comum à época, um padre jogou água na minha cabeça molhando os meus cabelos loiros dizendo algumas palavras engraçadas. Pronto! Eu estava consagrado a Deus! E o pior, como eu já estava realmente grandinho e nem me perguntaram se queria aquilo, entendia que tudo não passava de uma conspiração contra o meu “livre arbítrio”.

Assim fui crescendo, sem mimos, sem pai, que falecera ainda jovem, e entre uma birra e outra, coisa teatral de menino esperto, sempre me lembrando da parteira que dizia ter-me recebido embrulhado numa fralda pendurada no bico de uma cegonha, que sabia ser mentira, mas logicamente, as suas palavras trariam no futuro algum sentido a minha vida.  A cegonha que dizia ter-me trazido lá do céu não fez voo cego e também deve ter vindo em forma de Espírito Santo deleitando-me carinhosamente no útero de minha mãe. Os anos se passaram e hoje dúvidas não pairam mais e nem busco respostas para querer endireitar a história. Todavia, entendia que não deveria ser assim, afinal, mesmo sem que eu soubesse, tinha nascido crente na existência Deus e acho que ninguém duvida, porque até aqueles que se dizem serem ateus, quando prestes a sofrerem um acidente ou um susto repentino, dizem: Meu Deus do céu! “Minha Nossa Senhora!” De minha parte, a única coisa que não podiam e nem podem discordar é que eu era e continuo católico, afinal eu nasci de mãe e família ligadas à igreja católica, então por que ir contra a natureza de quem acredita em Deus. Fui criado assim forçado a acreditar, sem nenhuma opção, sem o “livre arbítrio”. Um dia, para escrever um livro de cunho religioso que intitulei “Espelho das Águas”, tive a bela ideia ou quiçá, a obrigatoriedade de ler a Bíblia, não que eu já não a tivesse lido, mas, em razão dessa obra, achei-me na obrigação de ler tudo. Então crente na existência de Deus que eu já cria, aumentou ainda mais sem maiores contratempos.

Mas, a lenda da cegonha que a parteira resolvera me injetar na cabeça, tinha que voltar à tona neste texto em razão dos últimos acontecimentos que andaram me deixando apreensivo.

Dizia ela que tempos idos, num Reino que a parteira não se lembrava mais, havia uma mulher que gostava muito de crianças. Ela era amiga de um famoso médico ortopedista que casara com uma mulher infértil, situação que o deixava desnorteado porque ginecologia não era a sua especialidade. O problema é que a sua mulher não poderia engravidar, embora este fosse seu maior sonho. Ela que gostava muito de crianças certo dia ficou sabendo de uma situação idêntica à sua numa região não muito longe de sua cidade e aí resolveu procurar por um bebê abandonado. Acompanhada por uma escolta de escravos andou e caminhou incansavelmente, mas não encontrou nenhum rebento. Como estava exausta, decidiu pegar um barco, atravessar rio e ir ao Reino das Cegonhas, mas, de repente, ela viu uma cesta flutuando e nela uma recém-nascida, linda, de olhos azuis. A mulher não perdeu tempo e levou a criança até o esposo que, felizes, adotaram o bebê.

O mandatário maior do Reino das Cegonhas ao saber daquela situação ficou furioso e para castigar aquela senhora chamou um feiticeiro e pediu que a transformasse numa cegonha, e como forma de aumentar a minha tensão, a parteira disse, na maior cara de pau e achando que eu era bobo, que a partir daquela dia, aquela “mulher cegonha” passou a encontrar bebês abandonados e levar para as mulheres que não podiam ter filhos.

O tempo se passou e esta lenda que veio além de mais além chegou até a região de São Domingos dos Olhos D’água onde nasci e com certeza, a história veio com muitas alterações. Se correto ou não, a parteira continuou com sua narrativa... “Naquele Reino, com vergonha de contar de como nasciam os bebês, as mães quando davam à luz diziam aos filhos que as crianças eram trazidas pela cegonha e era a forma que elas achavam para justificar o aparecimento repentino de um novo membro na família e isso veio passando de geração a geração. E o curioso é que para explicar o descanso da mãe depois do parto e o quarto sujo de sangue, elas falavam aos filhos que a cegonha tinha bicado as suas pernas.”

Diz à lenda que quando uma cegonha faz ninho na chaminé de uma casa é sinal de que uma das mulheres ficará grávida logo. Ainda bem que é só lenda! A maioria das mulheres hoje mora em apartamentos e os prédios não têm chaminés. E foi em razão deste pequeno detalhe impregnado na região recôndita do meu cérebro é que me fez sonhar com uma cegonha, até conversar com ela e no final da conversa, me deixar surpreso quando disse: “Não sou a cegonha que te levou até sua mãe. Sou a bisneta dela e hoje sou responsável para levar estes bebês, ora enfileirados neste imenso berçário. Veja aqueles berços ali, têm gêmeos e são seus netos Davi e Letícia. Estou aguardando autorização para levantar voo e levá-los para sua filha. Ela é merecedora. Sei que orou e fez promessas para que isso acontecesse, mas, não tenha pressa porque Deus te escutou e atendeu suas preces. Agora me despeço porque tenho que alçar outro voo para levar aquele bebê-príncipe até o Reino das Astúrias.” Fui!...

(Vanderlan Domingos de Souza, advogado, escritor, missionário e ambientalista, vice-presidente da União Brasileira dos Escritores; presidente da ONG Visão Ambiental; membro da Academia Morrinhense de Letras; agraciado com Título Honorífico de Cidadão Goianiense. Escreve todas as quartas-feiras para o Dário da Manhã - Email: [email protected] / Blog: vanderlandomingos. blogspot.com  /Site: www.ongvisaoambiental.org.br)

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