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OPINIÃO

Angélica e Floripes

À esquerda, princesa Angélica, de Santa Cruz de Goiás, em dois momentos (vestida de vermelho e azul), representada por uma jovem; à direita, princesa Floripes, de Palmeiras de Goiás (vestida de vermelho com dourado), representada por uma criança.

Santa Cruz está localizada na região sudeste, às margens da GO-020 e Palmeiras na região oeste, GO- 156 BR-060; GO-060; GO-050. Fonte: http://www.palmeirasdegoias.go.gov.br/localizacao

Nas cavalhadas de Santa Cruz de Goiás e Palmeiras de Goiás há a participação feminina no papel de princesas: Angélica e Floripes.

O Imperador Carlos Magno e os doze “os pares de França”, em confronto com os turcos, também chamados mouros, vistos como pagãos e infiéis, ali, comandados pelo Almirante Balão que tinha a seu lado seu filho Ferrabrás, Rei de Alexandria (...). Floripes, filha do Almirante, se apaixonara por um cristão, Guido de Borgonha, em Roma, quando ali estivera com o pai e o irmão durante uma “justa”. Mais tarde, convertida ao cristianismo, casa com Guy de Borgonha.

“A História de Carlos Magno e os doze pares de França relata outros combates entre mouros e cristãos, ocorridos após a morte do Almirante e a coroação de Ferrabrás. Nesses novos combates, que são travados na Galiza, em Córdoba, Toledo, Saragoça, os turcos são coadjuvados por reis africanos como o soberano Sultão do Egito.”

“(...) Carlos Magno marcha com os doze pares e um numeroso exército... Seu sobrinho Roldão, um dos doze pares, está enamorado secretamente da moura Angélica, a quem viu em uma foto, filha de Abderramão, que a mantém cativa em uma lúgubre caverna” (Moreira de Carvalho, 1737). A obra conclui com os casamentos de Carlos Magno com Galiana, filha de Galafre, e de Roldão com Angélica, prévia a conversão de ambas ao cristianismo.

Na encenação em Santa Cruz os mouros raptam a princesa Angélica, “cristã”, durante a beligerância religiosa, acirrando, ainda mais, os conflitos. Resgatada pelos cristãos no momento da prisão e conversão dos mouros ao cristianismo.

Ouvi o bochicho malicioso de um “estudioso” e renomado folclorista: “A cavalhada de Santa Cruz não condiz com a história real. Certo está Palmeiras que tem a princesa Floripes, criança. Angélica não existe.”

É instigante buscar respostas e explicações baseadas em documentos sem desmerecer essa ou aquela manifestação. Um “do-in antropológico” (plagiando o cantor Gilberto Gil) sempre é necessário para o bom entendimento das ressignificações culturais. Ninguém está certo, ninguém está errado. Todos os cavaleiros de todos os municípios onde acontecem as cavalhadas (mouros e cristãos) estão transmitindo, subliminarmente, uma mensagem que atravessa anos (re)afirmando uma crença.

Mestre Alberto/AZ de Ouro, sentado no sofá em sua sala de visitas, relatou a cavalhada de Santa Cruz; falava com orgulho e emoção sobre a presença feminina na cavalhada: “princesa Angélica, ‘cristã’, filha de Berta, sobrinha de Carlos Magno, irmã de Roldão, raptada pelos mouros...” – papel disputadíssimo entre as jovens santa-cruzenses. Mensagem impregnada em sua memória e na de tantos outros e outras que (re)vivem esse folguedo. O bem sobrepujando o mal desde a primeira apresentação até hoje; o cristianismo “católico”, de forma lúdica, se mostrando capaz de tirar os fiéis da vida mundana, trazendo-os a refletir sobre a prática do bem por intermédio de uma determinada fé. Jogou-se a semente. Germinou... Até hoje resplandecem as frondosas sombras!

Volvemos a 1804 para entendermos o que aconteceu ao padre que trouxe as cavalhadas para o Estado de Goiás. Padre Gouveia, como era conhecido, Pároco de Santa Cruz (1804- 1832) foi envolvido na mais importante devassa ocorrida em Goiás dentro das ações da Inquisição, mesmo não tendo um Tribunal do Santo Ofício fixo em Goiás: “Uma devassa feita na freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Santa Cruz, em 1804, acusava o pároco colado e vigário de vara, padre Francisco Jose Gouveia de Sá e Albuquerque de várias faltas cometidas contra os seus fiéis e contra os seus fregueses: falta de residência na sua paroquia; mortes de seus fregueses sem receber o sacramento da unção dos enfermos; deixar seus fregueses sem o preceito da confissão quaresmal e comunhão pascal por mais de dois anos; mandar processar autos judiciais com falsidades, chegando a falsificar assinaturas de pessoas falecidas; cobrar taxas altas dos casamentos e proferir palavras imprudentes, injuriosas, insultantes contra seus fregueses na estação da missa... além dessas acusações pesava contra o pároco a prática de público concubinato de portas à dentro, cujo punível coito nasceu uma filha.” (Luís Mott e Castro, apud Curado e Paraguassú p. 25).

Anos mais tarde, 1816, padre Gouveia, antes inquirido e, posteriormente, promovido a “funcionário Inquisitorial”, preocupado com os fieis que estavam distanciados da igreja utilizou, estrategicamente, um auto para convencer o povo da necessidade em ser cristãos e banirem de suas vidas qualquer vestígio de outras práticas. Solicitou ao Padre José Vicente de Azevedo Noronha e Câmera, Vigário Capitular, Procurador, que respondia pela Prelazia de Goiás diante da Coroa e a Santa Sé, permissão para correr Cavalhada nas festividades de Pentecostes, em Santa Cruz de Goiás: – A falta de lazer e divertimento está desviando as almas para as festas profanas nos pagodes e vida mundana. Diante da argumentação do pároco, o Vigário Capitular concedeu a autorização, sendo apresentada a primeira Cavalhada do Estado de Goiás, em Santa Cruz de Goiás (1816) no Largo da Matriz, onde hoje está a Casa de Câmara e Cadeia, de acordo com registro encontrado no Livro do Tombo: Crônicas da Freguesia de Santa Cruz de Goiás, 1808-1832. A-D. Cúria Diocesana.

“A instituição da Inquisição persistiu até o início do século XIX após as guerras napoleônicas e um foco particular das inquisições espanhola e portuguesa era converter forçadamente judeus e muçulmanos ao catolicismo.” Traços nem sempre apresentados de forma visível.

“A cavalhada difundiu-se como uma catequese!” Uma volta ao Brasil Colônia quando as cores, símbolos, ritmos, autos etc. foram usados na catequização de negros e índios. Na verdade, a dimensão simbólica de que se revestia e reveste esse teatro equestre (pretos, brancos; ricos, pobres; catolicismo, islamismo; povo, poder) alimentava e alimenta o imaginário popular.

A princesa Angélica, “cristã”, encenada em Santa Cruz de Goiás nada mais é que a apropriação de costumes de um povo: “Epiteto dos mouros dado aos cristãos.” Apropriação de costumes é um hábito recorrente. Em meio a essas indagações e afirmativas pergunto: se representam princesas mouras, pode preencher a vaga uma candidata negra?

Seja Angélica, seja Floripes, moura ou cristã; Palmeiras ou Santa Cruz... Uma jovem aqui, uma criança acolá, são integrantes de uma das mais antigas e importantes Manifestações Culturais nesse nosso Goiás e estão aí abrilhantando, divertindo, ensinando e formando identidades.

Como lembra Cascudo (1969), “as vitórias contra os mouros eram muito festejadas tanto em Portugal como no Brasil, sendo assim, aos poucos as cavalhadas foram se popularizando e sendo apresentadas com ou sem conexão com datas especiais”. Em alguns municípios estão diretamente ligadas ás festas do Divino. Em outros, não.

E a moura encantada? Depois da reconquista cristã formou-se no povo de Silves/Portugal uma lenda recolhida no século passado: “Na noite de São João, à meia-noite, aparece na Cisterna Grande do Castelo de Silves uma moura encantada navegando sobre as águas num barco de prata com remos de ouro e entoando hinos da sua raça. É uma princesa que aguarda a chegada de um príncipe da sua fé que pronuncie as palavras mágicas necessárias para desencantá-la.”

(Aparecida Teixeira de Fátima Paraguassú historiadora, pesquisadora, musicista, poetisa, escritora, Presidente da Associação dos Amigos de Santa Cruz. [email protected])

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