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Saudosa maloca Iracema e trem das onze Adoniram Barbosa iluminado deixou belas canções

Produzo este artigo em Manaus e o concluo na empresa Ox-Red Química Ltda., do irmão e amigo Antonio Gomes de Souza, que me proporcionou toda a assistência quando de minha estada na capital do Amazonas, no período de 23 a 25 de junho.

Adoniram Barbosa viveu de 1912 a 1982. Cantor e compositor, Radialista filho de imigrantes italianos. Seu verdadeiro nome é João Rubinato. Adotou pseudônimo de Adoniram Barbosa homenageando seu melhor amigo, Adoniram, e Barbosa a Luis Barbosa, seu ídolo, um dos maiores cantores da década de 30, que faleceu aos 28 anos, vítima de tuberculose.

Em 1934 gravou a marcha Dona Boa, primeiro lugar em concurso carnavalesco promovido pela prefeitura de São Paulo. Na Rádio Record, cômico, discotecário e locutor por mais de 30 anos. Em 1955, o primeiro sucesso, Saudosa Maloca, gravado pelo conjunto Demônios da Garoa. Um lamento e uma impotência de contestar o poder. A “maloca” seria demolida, como ocorre muito hoje nas favelas e subúrbios das grandes cidades. São os excluídos sociais, aglomerados em casas e prédios abandonados e que de um dia para o outro são despejados e as construções demolidas. Saudosa Maloca ganhou estilo de canto de alto nível nas vozes de Elis Regina, também de sua filha, Maria Rita.

“Se o senhor num tá lembrado. Dá licença de contar. Que aqui onde agora está, esse edifício arto era uma casa veia. Um palacete assombrado, que eu, Mato Grosso e o Joca construimo nossa maloca. Mais um dia, nois nem pode se alembrar, veio os homes, com as ferramenta: o dono mandou derrubar. Saudosa maloca, maloca querida, onde nois passemos os dias feliz de nossa vida.”

Adoniram Barbosa retrata em suas letras o cotidiano das camadas simples da população urbana e as mudanças causadas pelo progresso, para isso, faz uso da maneira de falar dos moradores de origem italiana de alguns bairros paulistanos, como Barra Funda e Braz. A maneira de compor sem se preocupar com a grafia, tornou-se sua maior característica e lhe rendeu críticas de gente como o poeta Vinicius de Moraes. Não deu importância, tanto que musicou uma poesia do escritor carioca, transformando-a na valsa Bom dia, tristeza.

As pequenas crônicas da vida paulistana criadas por Adoniram, com sotaque peculiar, resultado da fusão das várias raças que escolheram a capital paulista como morada, tornaram-se conhecidas em todo Brasil na interpretação dos Demônios da Garoa.

Na sequência de sua carreira lançou outras músicas como Samba do Arnesto e em 1964 a mais famosa Trem das Onze, falando à comunidade do subúrbio para quem o trem era presença constante e necessária. A composição foi premiada no carnaval do Rio de Janeiro em 1965. Recebeu versão na bela voz de Gal Costa. É até hoje muito cantada em rodas de samba e encontros familiares, em expressão pura e doce com muita alegria.

“Não posso ficar nem mais um minuto com você. Sinto muito amor, mas não pode ser. Moro em Jaçanã. Se eu perder esse trem que sai agora às onze horas, só amanhã de manhã. Além disso, mulher tem outra coisa. Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar. Sou filho único, tenho minha casa para olhar. Eu não posso ficar.”

Em Iracema, Adoniram inspira-se numa notícia de jornal que narra o cenário cruel onde a máquina esmaga um ser humano. Exatamente como ocorre hoje com nosso trânsito louco. Condutores irresponsáveis e outros embriagados. Veja a letra que é uma oração fúnebre e um protesto, que já cantamos muitas vezes:

“Iracema, eu nunca mais te vi. Iracema meu grande amor foi embora. Chorei, eu chorei de dó, porque Iracema, meu grande amor foi você. Iracema, eu sempre dizia, cuidado ao travessar essa rua. Eu falava mas você não me escuitava, não me escuitava não. Iracema você travessou contramão. E hoje ela vive lá no céu. Ela vive bem juntinho de nosso Senhor. De boa lembrança guardo somente suas meias e seu sapato. Iracema eu perdi o seu retrato. Iracema fartava 20 dias pro nosso casamento, que nois ia se casar. Você travessou a Rua São João, vem um carro te pega, te pincha no chão, você foi pra sistência, o chofer não teve curpa. Paciência.”

No Samba do Arnesto é a linguagem da miscigenação cultural do italiano, mulato e do branco, que moram nos cortiços e nas malocas, que se reunia para suas rodas:

“O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás, Nós fumos não encontremos ninguém, Nós voltemos com uma baita de uma reiva, Da outra vez nós num vai mais, Nós não semos tatu! No outro dia encontremo com o Arnesto, Que pediu desculpas mais nós não aceitemos, Isso não se faz, Arnesto, nós não se importa, Mas você devia ter ponhado um recado na porta. Um recado assim ói: ‘Ói, turma, num deu pra esperá, Aduvido que isso, num faz mar, num tem importância, Assinado em cruz porque não sei escrever.’”

Veja bem a inspiração e a sabedoria de Adoniram Barbosa nesta música que se tornou jargão popular que hoje é usada rotineiramente em festas e aniversários:

“Se voceis pensam que nóis fumos embora, Nóis enganemos voceis. Fingimos que fumos e vortemos, Ói nóis aqui traveis, Nóis tava indo, Tava quase lá, E arresorvemo, vortemos prá cá, E agora, nóis vai ficar fregueis, Ói nóis aqui traveis.”

Cerca de 121 músicas foram por ele gravadas e em 1980, um show com vários cantores de renome. Entre suas músicas já citadas podemos acrescentar sucessos como Tiro ao Álvaro, As Mariposas, Despejo na Favela, No Morro da Casa Verde, Abrigo de vagabundos.

Em As Mariposas Adoniram se gaba com esperteza perante as mulheres:

“As mariposa quando chega o frio, Fica dando volta em volta da lâmpida pra se esquentar. Elas roda, roda, roda e dispois se senta, Em cima do prato da lâmpida pra descansar. Eu sou a lâmpida, E as muié é as mariposa, Que fica dando volta em volta de mim, Toda noite só pra me beijar.”

Em Apaga o fogo, mané, ao contrário, descreve um homem abandonado pela companheira, de uma forma irreverente.

“Inez saiu dizendo que ia comprar um pavio pro lampião. Pode me esperar Mané, Que eu já volto já. Acendi o fogão, botei a água pra esquentar e fui pro portão, Só pra ver Inez chegar. Anoiteceu e ela não voltou, Fui pra rua feito louco, pra saber o que aconteceu. Procurei na Central, procurei no hospital e no xadrez. Andei a cidade inteira, E não encontrei Inez. Voltei pra casa triste demais, o que Inez me fez não se faz. No chão bem perto do fogão encontrei um papel escrito assim: -Pode apagar o fogo Mané que eu não volto mais.”

Adoniram narrador de um tempo, poeta popular paulistano, que marcou retrato de uma cidade e de uma sociedade em transição. Iluminado nos deixou belas canções...

(Barbosa Nunes, advogado, ex-radialista, membro da AGI, delegado de polícia aposentado, professor e maçom do Grande Oriente do Brasil)

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