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OPINIÃO

Tantos anos...

E de repente, passaram-se oito décadas. Não direi que o tempo se escoou imperceptivelmente – até porque o peso dos anos se faz sentir, fisicamente.

A memória guarda flashes do passado e é seletiva, às vezes traiçoeira. A tendência é preservar o bom, o prazeroso, o agradável e bonito. Mas o que foi dor permanece, mesmo quando virou cinza a brasa que queimou, que doeu, que deixou marcas.

Como resistir à tentação de comparar o ontem e o hoje? Digo aos meus netos que na infância, na fazenda dos meus avós não tínhamos energia elétrica, nem rádio, nem telefone ou televisão e – menos ainda – celular e computador. As crianças ficam intrigadas e perguntam: “O que você fazia?”

Havia tanto a fazer! O dia começava com as orações matinais, no quarto de dormir; em seguida, pedíamos a bênção aos mais velhos, a família reunida em torno da grande mesa rústica. Depois do leite com biscoitos e beijus, eu ia ajudar Teté, minha tia e madrinha, a recolher os ovos nos galinheiros. Ela me entregava uma caixinha de madeira e levava um lápis de ponta grossa, para anotar o dia da postura e a galinha poedeira. Começávamos pelas vermelhas, depois as brancas e finalmente as pedreses, que eu achava lindas.

Os cercados de tela acompanhavam o declive do morro, do lado do engenho. Empregados passavam e cumprimentavam; ela respondia com gentileza e perguntava pelos filhos, pela saúde dos pais ou da mulher. Às vezes, repreendia o encarregado dos poleiros que não estavam bem limpos, ou mandava trocar a água dos bebedouros. Ao final, a caixinha estava cheia de ovos, que eram levados para a despensa e consumidos segundo a ordem das anotações.

Completado o giro, o sol ia alto sobre as copas das árvores. Pegava a camisola de tomar banho, feita de chita, punha tamancos e seguia para o riacho. Com outras meninas – minhas irmãs ou filhas dos agregados – descia a rampa de pedras em direção ao pomar. Ultrapassada a escadinha sobre a cerca, do lado esquerdo ficava o pé de groselha; à direita, as araçás; mais além, um jambeiro muito alto, inacessível para as crianças menores que não alcançavam seus frutos amarelos.

E havia as mangueiras, filas de mangueiras frondosas, de variedades sem conta e generosidade sem igual. Os galhos vergavam ao peso das frutas; era fácil subir neles ou, simplesmente, estender os braços e pegar as mangas maduras, suculentas. Dependendo da época, colhíamos cajus ou quebrávamos bacuris, com um som cavo que ecoava na água. Em pratos esmaltados, levávamos punhados de farinha, à moda nordestina. À beira do riacho, cada qual vestia sua camisola e merendávamos sob o dossel das juçareiras.

Agora, era mergulhar nas águas claras, vendo no fundo as piabinhas que nadavam entre reflexos do sol filtrado pelas ramas. Uma hora, duas horas de banho: pulos da ribanceira, apostas de quem nadava mais rápido, caldos, brincadeiras. Nas margens do riacho, apanhávamos porções de tabatinga e esculpíamos bonecos e calungas.

O sino tocava, chamando para o almoço. A fome era muita e a comida simples: nunca mais saboreei arroz igual, feito no azeite de babaçu! Verduras da horta de minha avó; carnes variadas, de capão, de galinha, de leitoa, porco ou carneiro, de gado curraleiro, quase sempre seca e salgada, exposta ao sol. Com frequência havia caças: paca, veado e tatu eram iguarias que resultavam em pratos deliciosos. Em época de pescarias, vinham peixes frescos da fazenda Escalvados, onde uma imensa lagoa fazia a felicidade dos pescadores. No almoço, comiam-se frutas à sobremesa; no jantar, doces caseiros, compotas de frutas; nos dias de festa, leite-creme, blamange com ameixas, ovos nevados.

Seguindo a hierarquia doméstica, as crianças assentavam-se no fim da mesa e deviam postar-se educadamente, mas não havia carrancismos. A conversa era animada e dela participávamos, contando nossas proezas ou simplesmente ouvindo os mais velhos, que também nos escutavam com atenção e carinho.

Na hora da sesta, respeitava-se a soneca dos adultos. Era um momento de absoluta liberdade, que aproveitávamos para ir à cozinha, conversar com as empregadas e provar do que comiam e que parecia delicioso: torresmo, feijão com carne seca, cambica de buriti. Eu gostava da velha Esperança, que tinha sido escrava e contava histórias do cativeiro, algumas terrificantes, como a da sinhazinha que ouviu o marido elogiar os dentes de uma mucama – e, enciumada, mandou arrancá-los.

– Como era o nome dela? eu queria saber.

– Ela não morava aqui, Nhanhã. De veis em quando ela vinha visitar a Branca Veia – desconversava a ex-escrava.

Intrigada, eu ficava a matutar: seria uma das filhas mais velhas de minha bisavó, que moravam no Recife? Jamais desvendei tal mistério.

(Lena Castello Branco, escritora)

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