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OPINIÃO

Um pouco de espuma

Jandaia não é uma cidade muito grande. Atende ao consagrado padrão urbanístico do interior de Goiás: as construções se formaram diante da igreja, em frente a uma praça cheia de árvores vistosas e bancos de cimento. Vivem por ali pouco mais de cinco mil almas, alheias ao tempo que corre perdido pelas ruas de paralelepípedo que, aos poucos, foram cobertas por uma grossa camada de asfalto.

Jandaia não é cidade para amadores ou iniciantes. Ainda que se pese a forte tradição católica, os jandaienses são sujeitos valentes, durões. Sou de lá, diga-se de passagem. Só que há um causo que corre à boca miúda em Palmeiras de Goiás sobre um de meus conterrâneos. Só que ninguém é doido de contar para desconhecidos. Não se bole com cabra de minha terra, que, como todos sabem, impõem respeito.

Conta-se que um jandaiense foi fazer a barba num salão em Palmeiras. Tirou a lama das botas, deitou o chapéu na cadeira e reivindicou atendimento. A pelagem da fuça já ia alta. A mulher reclamava. Não carecia de ser bruto assim. Como já está na cidade para resolver um punhado de coisas da fazenda, aproveitou a deixa para limpar a cara e surpreender a digníssima.

Conta-se que o tal barbeiro tinha uma desavença com homens de Jandaia. Dizem que a mulher o teria trocado por um sujeito da terrinha. E que não perdia a chance de afrontar jandaiense que fosse. E o negócio aconteceu mais ou menos assim.

– Faça a minha barba aí.

– Como o senhor prefere?

– Tira esses pelos da minha fuça. Quero agradar minha mulher. E capricha no serviço.

– O senhor é de onde?

– Sou de Jandaia.

O barbeiro, gozador nato, decidiu aprontar uma traquinagem com o cidadão. Foi direto.

– Então o senhor é de Jandaia...

– Com orgulho.

– Soube que o pessoal de Jandaia não alisa cabrito. Pessoal lá é valente, durão. Não reclama de nada. Não tem moleza. É verdade?

– Sim, senhor. Não tem frescura por lá.

– Acho curiosa a moda de vocês.

– E desde quando homem de Jandaia tem moda. O que você está falando?

– É que, por causa dessa macheza toda, vocês não gostam de passar espuma para barbear. Você também quer assim?

– Pois o senhor pode fazer.

O barbeiro nem se demorou. Homem valente lubrifica a fuça com suor mesmo. Correu a navalha ao longo da pele queimada de sol. Os sulcos da pele não permitiam o deslizar macio da lâmina. O sangue ia minando como se brotasse do solo, tingindo de vermelho o rosto agonizante do caboclo, que apertava os dedos contra a poltrona em sofrida experiência.

Ao finalizar a metade do serviço, preparava a lâmina para ajeitar a outra parte. O jandaiense foi ligeiro:

– Sabe, pode passar uma espuminha do outro lado.

– Uai, mas o senhor não é de Jandaia.

– Nem tanto. Eu moro uns 20 quilômetros para cá, bem depois das Pedrinhas...

(Victor Hugo Lopes, jornalista)

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