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Anápolis, 108 anos: ontem, hoje e amanhã

“A três léguas de Forquilha, apeei-me na Fazenda das Antas, situada acima do rio de mesmo nome, ainda um dos afluentes do Rio Corumbá. Essa fazenda era um engenho de açúcar que me pareceu em péssimo estado, mas do qual dependia um rancho muito limpo e bastante grande, no qual nos alojamos.” O relato acima consta no diário do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, quando este desbravava terras goianas, exatamente na região que hoje está situado o município de Anápolis, que hoje, dia 31 de julho, completará 108 anos. Da vila das Antas, que levava esse nome pela enorme quantidade de quadrúpedes que usavam o Ribeirão para aplacar a sede, a cidade que inseriu-se no projeto desenvolvimentista da marcha para o oeste, com a chegada da estrada de ferro na década de 30, passando pela cidade industrial e universitária atual, Anápolis é um local de contrastes: dos condomínios horizontais e das favelas urbanas, com amontoado de gente em condições subumanas. Dos carros de luxo e das carroças de tração animal. Da influência religiosa europeia romana ou Calvinista aos terreiros de Umbanda. Dos jogos no estádio Jonas Duarte e dos campeonatos de várzea nos campos de terra. Da sede da Universidade Estadual de Goiás, antiga Uniana e de escolas de placas. É essa cidade que completa mais de um ano de existência.

Aqui a segregação urbana, consequência do neoliberalismo mostra sua face, segregação essa que promove o desenvolvimento de guetos ricos, protegidos por dispositivos de segurança, e de guetos pobres abandonados à própria sorte.

A comemoração oficial terá o protocolar: entrega de comendas, inauguração de obras, lançamento de pedra fundamental de sei lá o que, desfile cívico e a lista segue leitor.

Por acompanhar e analisar a história da humanidade, todas as instâncias decisivas e decisórias sempre estiveram ligadas às cidades. As cidades, tornaram-se sinônimo de modernidade. Berço da inventividade, lugar de todas as classes sociais, dos espetáculos, dos divertimentos. Anápolis não é diferente, aqui a vida fervilha, seja nos parques ou em suas ruelas estreitas com seu tráfego espremido em ruas que mal cabem um carro. Tráfego que provoca fusão e confusão. A cidade é um caos, no qual se combinam ordem e desordem.

Nesses 108 anos é preciso repensar a cidade. Pensar a Anápolis que queremos deixar para nossos filhos e netos. Pensar a cidade é pensar o habitante, ou melhor, a pluralidade dos habitantes. Boas experiências não faltam, na mobilidade: fazer o que Curitiba e Bogotá (Colômbia) fizeram fundando um sistema de transporte em uma rede integrada de corredores de ônibus, menos custosa e mais eficiente. Na gestão urbana: em Estocolmo, cidade que inaugurou um sistema inovador de gestão integrada de resíduos que assegura uma taxa de reciclagem elevada, principalmente no caso dos resíduos orgânicos. Em Hamburgo, um ecobairro construído e aquecido por cogeração: utilizando a energia solar e a fotovoltaica, com gerenciamento e recuperação das águas da chuva. Reduzir o uso do carro pessoal, como Masdar, cidade próxima a Abu Dabi, nos Emirados Árabes Unidos, que ousa sonhar a utopia de uma cidade car free (livre de carro). Ou mesmo New Songdo, uma cidade-laboratório na qual as lixeiras públicas utilizam etiquetas específicas para creditar certa quantia de dinheiro a qualquer habitante que reciclar uma garrafa vazia. Em Detroit, a decadente cidade já comporta grandes culturas de verduras e legumes: um empresário propôs que se instalasse ali uma grande fazenda urbana. Os ecologistas preconizam a implantação de ciclovias, de corredores verdes, espaços de lazer nos locais das antigas fábricas. Ainda na gestão urbana e rural fazer o que fez o prefeito Manuel Sanchez Gordillo, em Marinaleda, na Andaluzia, uma cidade autogerida pelos habitantes. Ali se realizam assembleias públicas todas as semanas. Os cidadãos fazem a manutenção das ruas e calçadas gratuitamente todos domingos.

Esses exemplos acima provam que é possível sonhar. As experiências dessas cidades nos ensinam muito, resta saber se estamos dispostos a aprender. A centenária Anápolis não pode esperar. Suas ruas, seus espaços, seu povo, sua mobilidade pedem solução. É preciso sonhar, sonhar o sonho possível de uma cidade para todos e todas. Alegre, ousada, pujante que dê outro significado a palavra modernidade.

“Antas!... Sepultada no meio do deserto, longe das grandes estradas que ligam a capital goiana às principais praças dos sul do Estado à vila ou povoação das Antas, surge à vista do forasteiro, depois que se desce a chapada, em extenso vale, cercado de um mutismo tão belo e sedutor que seria o bastante para ali fundarem um estado, os poetas da antiga Babilônia. Na vila das Antas há meia dúzia de pessoas com as quais se pode travar conversação e uma destas é o Sr. José Batista... Consta de duas ruas paralelas que atravessam o largo da matriz, a qual fica situada bem no centro da população... o clima é saudável e ás águas magnificas.” (Oscar Leal, 1887)

Da cidade que Oscar Leal e Saint-Hilaire, descreveram ainda no século XVIII, restou pouco, ou melhor, quase nada. As antas foram assassinadas pela mão do homem. As árvores, a vegetação nativa foi devastada para dar lugar ao chamado “progresso”. Progresso? O Ribeirão das Antas oponente, vistoso, de águas magnifícas tornou-se um córrego-esgoto poluído e sufocado pela cidade que este deu vida. O clima que já fora um dos melhores do Brasil, sofre com as consequências do aquecimento global e do consumismo desenfreado. O ar puro e límpido, padece com o mau cheiro vindo do “orgulho” da cidade: o Daia (Distrito Agroindustrial de Anápolis) orgulho? Pensando assim, teríamos o que para comemorar nesses 108 anos? Sim, devemos comemorar e acreditar no povo que aqui vive. Pois o que a cidade tem de melhor, e de pior também (ambivalente), é o seu povo. Assim como os Ypês que florescem e colorem a cidade nessa época do ano, a cidade deve florescer. Oxalá que possamos pensar, sonhar e concretizar o sonho de uma nova cidade. Viva Anápolis, viva os anapolinos, viva a cidade do coração do Brasil.

(Edergênio Vieira, poeta e educador da Rede Municipal de Ensino de Anápolis - @edergenio)

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