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OPINIÃO

Beira de rio

Há tempos atrás, escrevi um poema que começava assim: É apenas um rio. / É um rio claro e sereno./ Não, é um rio turvo, majestoso./ Existe como parece: marrom... azul... dourado... prateado.../ Belo, belo, esse rio é./ O que já foi dito dele,/ e que não é tudo,/ vai depender de como você o vê./ Sei que não o vê como eu./ Desse rio que falo, entendo eu./ Ele é meu... O meu rio Araguaia.

Pode até parecer engraçado, mas, para mim, o mês de julho tem cheiro, som e cor. Cheiro de beira de rio... remoinho da água no meio das pedras... murmúrio sossegado das canoas de ubá, diminuindo distâncias plenas de azul e de pios das aves ribeirinhas, que exibem voos sob a luz do sol.

Já vai longe a primeira vez que acampei na beira do rio Araguaia. Acho que pouco tinha passado dos meus dezesseis anos. Se não sei precisar com exatidão esse tempo vivido, certeza eu tenho da sede de aventura que me impelia para lá.

Naquela época, chegar até Aruanã já era uma aventura. Viajávamos na carroceria de um caminhão, que transportava tudo: cargas, bagagens e passageiros. As roupas pessoais, toalhas, lençóis e cobertores eram acomodados em sacos de pano, para que, colocados por cima dos outros objetos, servissem de assentos um pouco mais confortáveis.

Ainda de madrugada, lá íamos nós, amontoados e nas alturas. Quando o sol nascia, já estávamos com o “pé na estrada”. Logo que os sacolejos começavam, por causa da trepidação das “costelas de vaca”, ondulações próprias das estradas de terra, começavam também as reclamações, ao que o nosso “arranjador” do passeio, Elder Camargo de Passos, primo muito querido, com a sua tranquilidade rotineira, respondia: – Calma. Depois das primeiras bacadas, tudo se ajeita.

Também era ele que avisava: – Cuidado, gente! Abaixa a cabeça que lá vem taboca. E eu, marinheira de primeira viagem, sujeita às surpresas, depois da lambada, aprendi que taboca é planta da família do bambu, que cresce na beira das estradas, forma touceira alta e pode bater nas pessoas que viajam como nós.

Com a maturidade, entendi que esses avisos não serviam apenas para as viagens nas carrocerias de caminhões.A própria vida me ensinou que depois das primeiras “bacadas”, tudo tende a se acomodar e que, dependendo das circunstâncias, desviar do alvo das pancadas pode ser a melhor das soluções.

E a viagem continuava. Depois de passar pela Colônia de Uvá, Itapirapuã, Águas de São João e fazer a parada obrigatória na biquinha d’água, chegávamos a Aruanã. Uma Aruanã poeirenta, encalorada, mas rica de brilho das águas do rio Araguaia, que, em certo ponto, já corria alargado por outras águas, essas vindas do Rio Vermelho.

A Aruanã daquele tempo não tinha nada a ver com a Aruanã de hoje, mas o Bar do Elpídio e o Hotel Araguaia já estavam lá, como também lá estava o frondoso tamboril, perto da escadaria do porto, a oferecer sua sombra hospitaleira para todos que quisessem descansar.

Depois da chegada, nova tarefa: transferir a carga para o batelão. Em fila indiana, carregávamos os volumes que eram distribuídos com equilíbrio no barco, para podermos navegar, com segurança, rumo à praia. Já, no nosso destino, outra fila indiana, desta vez, para descarregar o batelão.

Com os nossos pertences e as barracas já organizadas, tomávamos posse do silêncio e da beleza que nos abraçavam. Era, então, que o passeio começava.

De modo rústico, primitivo mesmo, pois ninguém tinha intenção de “levar” os hábitos da cidade para lá, o silêncio da natureza oferecia momentos únicos e riquíssimos para a vivência interior de quem se dispusesse, deles, desfrutar.

Como ficávamos um período longo na beira do rio, acompanhávamos o ciclo da lua. E foi justo numa noite escura, sem luar, que “andando” de barco, pude viver um dos meus instantes ribeirinhos de inesquecível beleza. As estrelas, que cobriam inteiramente o céu, brilhavam também na superfície da água, que as refletia como se fosse um espelho, fazendo parecer dois, o céu, que eu tinha ao alcance do meu olhar.

Mas o tempo passou e com o passar do tempo, muita coisa mudou. As cidades ribeirinhas respiram ares de cidade grande.

Ainda, algumas vezes, voltei à beira do Araguaia. Depois, não mais pisei as suas areias. Somente olhava, de longe, o rio cumprir, sereno, o seu destino.

Aruanã não é mais a mesma, como eu também não sou. Se o progresso trouxe para a cidade outras urgências e outro porte, o tempo impôs a mim outro ritmo e outras alegrias.

Já não vou mais olhar o meu Araguaia. Fico com as lembranças e a saudade. Mas as lembranças são tão vivas, que se fechar os olhos, eu vejo o meu rio passar sossegado, cortando a solidão. E agora, isso me basta.

(Heloisa Helena, escritora)

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