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OPINIÃO

Os espíritos de Atanásio

A sessão espírita de Atanásio, que se realizava em Contagem, a coisa de duas léguas do Duro, puxava muita gente todas as semanas, em busca da cura dos males do corpo, das quebras de feitiço, da arrenegação da bebida, do clarear dos caminhos. Se o povo se curava, não sei; só posso garantir é que o Atanásio se cercava de um mistério e de uma força de sugestão sobre o povo, que deitou fama no município inteiro. Dizem que ele tirava espírito, expulsava quebranto, desmanchava inhacas, benzia o gado pelo rastro, curava atrasos de vida e outras mandraquices sob a orientação dos espíritos.

Respeitado como Atanásio, só Palmeirinha, morador na Garganta, e a antiga Maria Dentão, do Açude, ambos finados. E por causa da sessão que se realizava na casa de Atanásio, Contagem ficou com fama de lugar pavoroso, arrepiante, embora não fosse local de paisagem que inspirasse isto: lugar limpo e meio acampinado, com seus corguinhos rastejando gorgolejantes como se fosse um pedaço de paraíso esquecido por aquelas paragens.

O pavor do povo não era o pavor de Venço, principalmente quando estava cheio de pinga, que Venço não era de virar o juízo com esses negócios de medo de visagens.

Venço morava na fazenda Duas Pontes, de Filuca Seabra, na beira do rio Palmeiras, pra lá do Condeú, já perto do Cajair, quase na saia da Serra Branca, que embeiça o Estado do Tocantins com o da Bahia.

Baixinho, nem preto nem branco, tinha uma cor meio-alvaçã-meio-amarelo-barro-de-loiça, corpo franzino, feições esmirradas, mas muito prosista, casado com uma atoleimada, para não dizer mouca, mas tocava a vidinha sacrificosa de tomar conta do gadinho de Filuca nas Duas Pontes.

A cara de Venço era de quem vivia comendo iuiú dos brejos cheios de sucuriú e carne de galheiro daqueles gerais cheios de cascavel, em companhia da mouca taciturna, que não dava o prazer de uma companhia de prosa, obrigando Venço a ir de vez em quando na casa de Porfírio para prosear um bocado comendo beiju de massa na desmancha ou dar com os costados no Cajair ou no velho Trasíbulo para descontar o longo tempo de mutismo passado ao lado da mouca.

Quando ia à rua, Venço descontava o atraso, enchendo a pança na casa de Filuca, e bebendo uma cachacinha na venda de Almiro de Fortunata e de Joaquininha, passando ali alguns dias.

Um dia, Filuca chamou-o e deu-lhe um bando de coisas para muni-lo do ne-cessário para a tomação de conta do gado: deu-lhe uma carabina, munição, sal e outras coisas imprescindíveis para a sobrevivência nos gerais, que ficavam logo no subir da Serra Branca, onde Venço poderia apanhar um galheiro (que naquele tempo não havia Ibama) e defender o gado de Filuca das cobras e onças muito dadeiras de prejuízo.

E Venço, todo satisfeito, gastou uma parte do dinheiro em pinga, e saiu já meio cercando frangos em direção à Fazenda Duas Pontes.  Podia esperar para o dia seguinte, mas a cachaça, a carabina e as balas fartas deram-lhe coragem de enfrentar com a mulinha queimada os morros que levaram aos altos da Fazendinha e descambavam na Contagem, o fatídico lugar onde reinavam os espíritos mexedores com gente.

Venço chegou à porta de Atanásio e só escutou o gungunar de gente, a canto-ria estranha que o fez parar por um instante e desconfiar que estava sendo realizada uma sessão espírita.

Mais por boniteza e fanfarronice, Venço adentrou a casa e, para espanto de todos, quis mostrar que era corajudo e desacismado, e foi falando, todo metido a gente:

– Quá!  Esses isprito atua é n'ocês aí, que ne mim eles num é besta!

O povo benzeu-se e previu algo terrível, pois os espíritos pastoreados por Atanásio eram famosos.  Mas Venço, ou melhor, a pinga de Venço, continuou:

– Quero vê se eles é macho de atuá é aqui, ó! – e bateu com a mão rude e ca-losa num dos lados de seu próprio traseiro.

Nem bem acabou de falar, uma como que força estranha fez Venço se agachar na marra e ele saiu arrastando apavorado, com o traseiro ralando nos tocos de redor da casa de Atanásio, precisando que este saísse às pressas para esconjurar o espírito ofendido, que castigara a língua de Venço.

Após aquele episódio, Venço não quis mais brincar com espírito, e a sessão de Atanásio redobrou a fama, curando gente, desmanchando feitiço, desfazendo inhacas e abrindo caminhos que olho gordo havia fechado.

(Liberato Póvoa, [email protected] (Desembargador aposentado do TJ-TO, escritor, jurista, historiador e advogado)

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