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OPINIÃO

Polpa amarela

Quando menino, residente em uma fazenda no município de Palmeiras de Goiás, gostava de correr o pasto em busca de maxixe e melancias. O primeiro vegetal, um tipo de pepino com espinhos macios, servia para brincar de rei do gado. Tocava-lhes quatro palitos a servirem de patas, um para rabo e, se fêmea fosse, dois à frente como um grande par de chifres. Em tempo de sorte, o curral tinha umas 20 vaquinhas. Gordinhas, verdes e babentas.

Num pedaço do quintal, ficava o curral onde eu zelava do gadinho. Havia cercado um canto varrido do cascalho com gravetos mais firmes e barbantes. Era muito rústico. Não havia porteira. Apenas uma tentativa de colchete, que nunca servia para nada e nem firmava coisa alguma. Para minha sorte de menino, meu rebanho também não era lá muito ágil.

O gadinho feito de maxixe durava, quando muito, uma semana. Era uma tristeza. Ia amarelando aos poucos, desbotando o viço verde. A carne rotunda e firme ia murchando, fragilizando, e o meu rebanho fictício ia morrendo aos poucos. Não sabia o que fazer. O ciclo da vida continuava a se fazer presente naquela inocente brincadeira de vaqueiro.

Minhas vaquinhas morriam. Eu as zelava com amor. Praticava os primeiros cuidados. Tratava do gotejamento podre de suas feridas. Não adiantava. Morriam todas. O enterro era simples, mas digno. E os palitos que lhes serviam de pernas se tornavam cruzes fincadas no cascalho onde seus corpos teriam o repouso final. Rezava um pai nosso para encomendar-lhes o espírito bovino que residia naqueles vegetais amargos.

A tristeza era braba. Acontece que, aos poucos, fui descobrindo que o gadinho, quando ficava serenando à noite e torrando sob sol aberto, morria mais rápido. Tive de refazer o curral perto de casa. À sombra de uma varanda ao lado da casinha de tijolos expostos que me servia de morada ergui o abrigo de minhas vaquinha de maxixe. Era obra tímida e de vida curta. Bastava minha mãe ver a lambreca de barbante e graveto e vegetal podre para varrer para longe meu suado patrimônio.

Eu fui desanimando daquela atividade de correr o pasto em busca de maxixe para se tornar bois e bezerros. Dava um trabalho danado, que me tomava pedaço da manhã, e que ia para o lixo ao final do dia. Até que o Rina descobriu uma outra novidade. No roçado de arroz que tio Aldorano e tia Preta tinham no capão de mato acima, havia melancia. Umas bichas rotundas e doces. Quer dizer, nem tão açucaradas assim.

Por tempo demais fui acostumado às melancias verdes, de polpa vermelha doce e sementes pretinhas. Pensava eu que teria a mesma sorte em lambuzar com fruta semelhante no pasto. Mas não dava sorte. A polpa daquele amontoado de melancias era amarela, pouco doce e com sementes marrons.

A expectativa era sempre a de achar uma melancia de polpa vermelha. Era o eldorado de minhas incursões ao roçado de arroz. Nunca vi uma que fosse. Ao achar o vegetal repousando em meio ao arrozal, catava uma com o Rina ou o Dolfo. Corríamos felizes com o achado, que faria a alegria antes do almoço ou da janta.

A gente, que não tinha idade - ou permissão - para andar com faca ou canivete, dispunha de pouco recurso para abri-las. O segredo era encontrar um toco velho e pontudo de madeira próximo que permitisse fraturar a casca firme do vegetal. Uma vez rompida a barreira, era a expectativa de sempre. E o miolo era sempre amarelo.

Não tinha jeito. Sempre era o maldito miolo dourado. Nunca o vermelhinho. Sempre aquele gosto sem graça de pepino. A gente vai perdendo o entusiasmo com essa frustração toda. Por uns seis meses - praticamente uma vida quando se é menino - a gente pelejou com as frutas perdidas no pasto. Até que passou da época, o arrozal sumiu e deu espaço para a cultura do milho.

Não faz muitos dias quis lembrar do sabor daqueles anos. Cacei por toda a banda de Goiânia uma maldita melancia de polpa dourada. Não achei nenhuma. Apenas aquelas de miolo vermelhinho e doce, que tanto procurei naqueles meus tempos de menino...

(Victor Hugo Lopes, jornalista)

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