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OPINIÃO

Tantos anos (III)

A rede canta nos armadores, ao impulso dos meus pés descalços. No alto, o teto da velha casa em telha vã filtra a luz. Lá fora faz calor; aqui, a sombra das árvores ameniza a canícula, ao rumor da brisa sopra.

É hora de ler. E ler é viajar por terras distantes, é mergulhar no tempo, é fazer amigos, é conhecer coisas, pessoas, paisagens, cheiros e sons insuspeitados. Descobri cedo a magia da leitura. Fui leitora inveterada do Tico-Tico e, sendo gorducha e gulosa, meu pai apelidou-me carinhosamente de Bolão, o simpático personagem amigo de Azeitona e Reco-Reco. Minha mãe adorava romances, que não lhe faltavam, vindos pelo correio. Meu pai encontrava tempo, entre seus muitos afazeres, para acompanhar o que havia de mais moderno na literatura – de H.G. Wells a John dos Passos, de Stephan Zweig a Remarque, Hemingway e Somerset Maugham. Às escondidas, tentei conhecer aquela prosa adulta, mas achei tudo chato e difícil de entender. Anos mais tarde, iria reelaborar meu julgamento.

Nós, crianças, cedo conhecemos Monteiro Lobato e Viriato Correia, que nos encantava com a história de Cazuza e sua pequena vila maranhense, Miritiba, transformada em microcosmo. Líamos e relíamos velhas lendas clássicas do universo infantil: Grimm, Perrault, Andersen. Também nos familiarizamos – seguindo a tradição nordestina – com as proezas de Carlos Magno e os Doze Pares de França; com as desventuras de Genoveva de Brabant; com os lances cômicos de Pantagruel e do Barão de Münchausen. D. Quixote e Sancho Pança eram nossos conhecidos, assim como Hércules, Jason e os Argonautas.

Cultura europeia, submissão colonizada? Dirão alguns. Talvez, tenham razão; sempre é bom respeitar o julgamento do outro. Todavia, aquela miscelânea de histórias, que integram o cerne da cultura ocidental, teve o condão de abrir nossas mentes para horizontes que extrapolavam o mundo circundante e descortinar além da nossa aldeia.

Depois do jantar – às cinco da tarde – adultos e crianças descíamos para o pátio e caminhávamos entre as aléias de mangueiras. Chegávamos ao morrinho, no caminho do Brejo, a cidadezinha mais próxima da fazenda; ou visitávamos um dos agregados. Podia ser Seu Félix e Sá Josefa, que moravam em um sítio sombreado de cajazeiras, no caminho da Passagem, poço mágico e profundo em que raramente podíamos mergulhar.

Gostávamos de ir à casa do velho Sabino, que era cego, mas querido e respeitado, assim como sua numerosa família. Quando chegávamos, aos mais velhos eram oferecidos tamboretes de sola, para que descansassem. Conversava-se sobre o tempo, a colheita das roças, a saúde – ou doença – de familiares ou conhecidos. Minha avó, quando avisada, trazia remédios da farmácia que mantinha em casa, para atender os casos rotineiros de diarréia e gripe.

Na morada pobre, de chão batido e coberta de palhas de babaçu, reinava a limpeza; o terreiro era varrido, os copos de alumínio, areados. Para as visitas, sempre havia bolo de goma ou bolos fritos, além de frutas do quintal. Galinhas ciscavam e patos nadavam no riachinho que corria entre as árvores. Ao lado, na casa de farinha, havia uma enorme chapa de cobre reluzente, onde era mexida a massa da mandioca ao calor de achas de lenha incandescente, até que chegasse ao ponto ideal, aromática e saborosa.

Outros vultos emergem das lembranças: Domingas, a cozinheira de saborosos pratos, sempre alegre, dançando ao ritmo do tambor; Doró – a boa Dorotéia – companheira de minha avó desde a infância, o sorriso sem dentes reverberandss nos olhos espertos; Madalena, que fazia o insuperável requeijão de manteiga, sua especialidade; Zoete, responsável pelo jardim, cuidava das plantas e tinha enormes olhos tristes.

E os companheiros de brincadeiras? Em algum momento do tempo, eles se esconderam ou se perderam, mas posso revê-los sem esforço: Beneditinha, esperta e ladina, sempre a nos ensinar artes e travessuras; Luis, um pretinho retinto que tinha o apelido de Gambá; Raimunda, que sabia acender o fogão de brinquedo para nossas comidinhas. Por onde andarão aqueles amigos inseparáveis que a vida dispersou?

Na loja, onde eram comercializados os produtos da fazenda, havia tulhas de sal grosso, peças de riscado e de morim nas prateleiras, algumas quinquilharias femininas, sabão e cachaça sobre o balcão. Não era lugar para meninas, mas eu sempre me oferecia para levar a merenda do meu avô, que dali dirigia os trabalhos da fazenda. Ele ficava feliz quando me via e perguntava se eu queria alguma coisa. Às vezes, pedia-lhe uma travessa para o cabelo; ou preferia um pirulito, que os havia guardados em um vidro de tampa grossa e pesada.

Voltava para a casa do morro, a residência erguida há tantos anos sobre uma elevação, cujas encostas eram recobertas de laranjeiras e de árvores de grande porte, povoadas de pássaros. Minha mãe ralhava comigo: “É feio pedir” – ela dizia. Quando meu avô sabia do pito, protestava: “Deixe a menina em paz!”. Eu me sentia importante, centro da atenção dos adultos – e intuía que eles discutiam porque gostavam de mim. Não fiquei pidona, nem complexada.

(Lena Castello Branco, escritora)

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