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OPINIÃO

Um trabalhador em busca da esperança

Amanhece. A claridade surge lentamente, matreira, indolente em decidir por momentos de pouca luz, em um amanhecer sem alegria. Ontem a noite surgiu de repente, como um acontecimento inusitado, normais nos dias atuais. O inverno chegou trazendo dias mais curtos e noites mais longas de se dormir a sono solto. Sonhos, acontecimentos vividos misturados às fantasias, recordações esmaecidas na memória ressurgem desorganizadas pelos anos idos. Noites mais frias semelhantes aos sentimentos dos homens. – Pouco calor humano dissimulado por olhares indiferentes, sem brilho nos olhos, uma luz insuficiente, estimulada pelo egoísmo, indiferentes às emoções.

O Sol distancia-se de nós no tempo e no espaço mesmo assim o seu calor é de  importância vital como energia geradora da vida!

Nos últimos tempos despertar pela manhã é mais um momento de incertezas em sua vida – Noites prolongadas e frias, dias mais curtos, de pouco calor, de uma luz penumbrada, insistente em não deixar vestígios por onde caminha na atual existência!

Eletricista desocupado, um trabalhador anotado em uma relação, aumentando o número nas estatísticas oficiais como mais um desempregado. É um ocioso involuntário, sempre disposto a ganhar o pão de cada dia com o suor consequente do seu labor digno. Não encontrando quem o empregue, torna-se um desolado, um morto vivo, quase um zumbi humano, vagando desnorteado, batendo de porta em porta e elas sempre fechadas; ou em órgãos oficiais transformados em agências da esperança. O salário desemprego foi um auxílio oportuno, mas os dias, apressados, impiedosos, o surpreenderam! Ele sempre na expectativa – Hoje... Amanhã... Próxima semana talvez... Um dia quem sabe?

Ele e seu filho de doze anos de idade moram sozinhos. Sobrevivem do Programa Bolsa Família.

Levantou-se. Acorda o filho. Enquanto prepara o desjejum o filho realiza sua higiene pessoal e se organiza para ir às aulas. Serviu leite com café e um pão dormido, sem manteiga... Ainda bem, a escola serve a merenda escolar, pensou. O filho alimenta-se rapidamente e sai para ir à escola localizada a poucas quadras de sua casa. Ele toma meio copo de café e vai percorrer algumas obras da construção civil oferecendo o seu trabalho. Em vão...

Entrou em um supermercado. Colocou bananas, um litro de leite e alguns pacotes de biscoitos na cesta de compras. Solicitou alguns quilos de carne no açougue. Refez as contas. O saldo do seu Cartão Bolsa Família era insuficiente... Inicialmente dúvidas... Depois a decisão – Ocultou o pacote de carne dentro da bolsa levada a tira colo. Participou da fila para ir à maquina registradora realizar o pagamento das compras. Passos lentos e momentos de reflexão... Decidiu pela tentativa do pouco provável mesmo consciente do ato ilegal, quitou a compra com o Cartão Bolsa Família, ultrapassou o caixa, acondicionou os produtos adquiridos dentro do saco plástico com logomarca do supermercado, respirou aliviado... Após os primeiros passos foi interpelado pelo segurança. Imediatamente veio o gerente. A prática do ato ilegal fora gravada em imagens pelas câmeras. Chamada a Polícia Militar o flagrante do furto foi relatado em um Boletim de Ocorrência. Detido e conduzido à Delegacia de Polícia.

Imediatamente algemado pelos pulsos, com as mãos para trás, aguardando o seu encarceramento em uma cela onde continuaria preso. O delegado de Polícia o avisou – Ficaria encarcerado e após trinta dias o conduziria à presença do juiz. Só então seria ouvido e julgado pelo crime que cometera ou mediante o pagamento de uma fiança aguardaria a audiência em liberdade.

Muito pálido, triste, cabisbaixo, sentou-se. Estava encarcerado, mas sua alma libertou-se através das lembranças arquivadas em sua mente – A imagem de sua mãe, todas as noites, sentada em uma cama simples, ao seu lado, ambos de mãos postas, em oração, agradecendo ao Criador, o pão nosso de cada dia, insistindo sempre na sua formação religiosa. E as suas recordações prosseguiam – Ele, uma criança, sentado ao lado da avó; aquelas mãos ágeis, trançando fios com bilros, bolinhas e mãos de cores iguais. Deixando aos seus ouvidos o som de estalidos num ritmo alternado, ora musica ora silencio, num espaço cadenciado, semelhante a um instrumento musical emitindo um som incomum, sem igual, jamais esquecido, mesmo tendo ouvido só quando criança, ao lado da avó rendeira. Mãos rápidas, dedos ágeis quase não acompanhados pelos seus olhos; depois prendia a trama de fios com alfinetes no desenho sobre a almofada, dando vida à lindas rendas! Relembrou também o seu trabalho manual realizando uma instalação elétrica, a expectativa de luz iluminando todo o ambiente! As mãos executam trabalhos, transformam pensamentos em palavras, formando frases, desenvolvendo raciocínio lógico. A sua mente se referia às mensagens através dos gestos das mãos, apresentadas em uma janela, um espaço retangular menor, traduzindo em sinais mensagens transmitidas por palavras nas telas das televisões.

A Língua Brasileira de Sinais (Libras) utilizada pela maioria dos surdos dos centros urbanos brasileiros. Para se comunicar em Libras não basta apenas conhecer os sinais. É necessário saber a sua gramática para combinar frases estabelecendo a combinação de configurações de mãos, movimentos e de pontos de articulações. Locais no espaço e no corpo, sinais são feitos, também expressões faciais e corporais, enviando informações visuais, os quais juntos compõem a unidade básica da língua.

Depois flashbacks, um senhor sentado a sua frente, atrás de uma mesa, vestido em uma toga preta, batia um martelo pequeno de madeira em um suporte sobre a mesa e apontando para ele dizia – Culpado!

Foi tocado no ombro direito, não tinha noção do tempo passado durante aquele transe. Levantou-se. Foi desalgemado. Movimentou os braços, as mãos, os dedos, sentiu a sensação física da liberdade! Era a mesma policial – Sua fiança foi paga, você esta livre e aguardará em casa a convocação para a audiência com o Juiz. Nós, policiais, cotizamos uma importância em dinheiro, iremos com você a um supermercado comprar uma cesta básica.

Na saída da Delegacia de polícia foi abordado por uma senhora. Ela ficara sabendo do ocorrido e ofereceu-lhe um emprego em sua empresa.

Após o meio-dia chega à sua casa, em liberdade, promessa de trabalho e a cesta básica que recebera como presente. Toda a história seria relatada ao filho em outro momento!

Sentou-se no sofá antigo, diante da televisão de cores descoloridas e imagens pouco nítidas. Naquele espaço só seu relembrava a manhã triste e uma tarde de esperanças – teve a sensação de estar protegido ao ser abordado pela policial. Atendendo a ocorrência, no supermercado, transmitiu-lhe segurança. Afastou as pessoas curiosas, nenhuma ofensa, nem olhares de desconfiança, retirou-o do local, rapidamente relatou o Boletim de Ocorrência e o conduziu à Delegacia de Polícia. Mesmo em situações opostas foi reconhecido como cidadão, para ele um tratamento de igualdade, respeitoso. Ajudando-o financeiramente foi fraterna e solidária.

À noite, assistindo televisão, relembrou fragmentos de um filme assistido há alguns anos – A história de um homem, preso, julgado e condenado pela justiça, por roubar um pão para alimentar sua irmã e seus filhos. Ao cumprir a pena, remando nas galés, jamais concordou com a sua condenação, tentava sempre a fuga sem nunca conseguir. Sua pena aumentou muito, mas um dia ele foi libertado.

Por ser um ex-prisioneiro ficou marginalizado, sendo expulso dos lugares onde tentava se hospedar. Dormia nas ruas. Certo dia foi acolhido por um bom religioso. Não se mostrou agradecido, rouba-lhe os talheres de prata durante a noite e foge. Preso, o religioso salva-o mais uma vez dizendo que fora presente, o lembra da promessa de se tornar um homem bom e ainda o presenteia com mais dois castiçais de prata.

Vai para uma região distante, muda o seu nome. Torna-se um próspero negociante. É considerado um homem bom. Um camponês é preso roubando frutos. Seria condenado por ter sido identificado como sendo o ex-prisioneiro. Após uma noite de hesitação o ex-prisioneiro vai assistir ao julgamento e revela sua verdadeira identidade dizendo – Senhores jurados mandem soltar o acusado. Presidente, não é ele, sou eu o verdadeiro ex-prisioneiro. Ele relembrou o acontecimento da sua história daquele dia. Assim declararei diante do juiz – Sou culpado! É verdade duas vezes passei por essa mesma dificuldade. Sempre por necessidades e isto há anos! Não fui ao supermercado com a intenção de furtar alimentos. Fui fazer compras, alimentos para mim e meu filho de 12 anos, uma criança ainda. Só após as compras verifiquei, o saldo do meu Cartão Bolsa Família era insuficiente, me enganei na data da liberação do crédito... O meu instinto de sobrevivência me motivou furtar a carne separada e colocada dentro da bolsa que levava à tiracolo. Essa foi realmente a motivação para a prática do crime cometido por mim! Assim estou aqui para ser submetido ao seu julgamento!

(Elson Silva, cirurgião-dentista - [email protected] / [email protected])

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