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OPINIÃO

Vale do Paranã

Vimos que a região do Vale do Paranã surgiu como zona pecuária de extensão dos currais baianos, depois se tornou fronteira agrícola de produção agropecuária e, afinal, vem sendo explorada no setor da indústria de transformação e de extrativismo vegetal. Antes de 1930, isolada do sul de Goiás, mantinha intenso intercâmbio comercial e cultural com a Bahia e Minas. Só depois da mudança da antiga capital de Goiás para Goiânia, passou a ter maior sintonia com a vida estadual. A partir dos anos 60, com a abertura da rodovia federal Brasília-Fortaleza, tornou-se ponto de passagem para várias regiões do país e atualmente mantém maior intercâmbio com o Distrito Federal.

Os habitantes do vão do Paranã apresentam uma identidade regional muito forte em razão das suas raízes históricas e culturais. Mas no campo político é que se distanciam do sentimento de regionalidade em função dos interesses competitivos de suas comunas. Esse fato remonta à história política dos núcleos mais antigos, que chamaríamos território dos coronéis. Com a nova estrutura econômica e social que veio em substituição ao latifúndio (e ao coronelismo), surgiu a perspectiva de uma nova política com oportunidades iguais para os valores novos. Mas não se formou ainda uma consciência política unitária no sentido de uma integração de objetivos para a solução dos problemas regionais. É ainda forte a linha de tradição a que se filiaram os adeptos do partidarismo radical.

O povo não politizado mantém-se à margem do processo político regional. A escolha de seus representantes acaba sendo realizada mediante o empenho da influência econômica que culmina numa detestável atividade de jogo de interesses (o que aliás em nada difere da tradição colonialista brasileira). A política, marcada pela preocupação máxima da promoção partidária, gera conflitos entre os grupos, entre as famílias dominantes e indispõe os indivíduos com ressentimentos pessoais. Só entendida em termos de situação e oposição (que se traduz na verdade como quem ganha ou quem perde). Não há esforço de consenso (ou bom senso) ante o ópio do poder.

Sítio d´Abadia e o Coronel Ornelas

Segue-se uma ligeira abordagem dos coronéis que se tornaram mais conhecidos na microrregião em foco, principalmente nos municípios mais antigos em que se formou uma linha de tradição a que se filiaram os adeptos das velhas facções políticas. Com patente ou sem patente, os coronéis serviam de escudo para o povo, oferecendo segurança e proteção, mas em troca da subordinação política.

Na história política de Sítio, tornou-se lendária a figura do coronel Joaquim Gomes Ornelas, que destas distâncias fora eleito 3º vice-presidente do Estado, segundo consta, na gestão Olegário Herculano da Silveira, 1913-1917, mas não fora convocado para tomar posse do cargo (ou não teria chegado a tempo, devido às dificuldades de acesso à antiga capital em Vila Boa). Então se rebelou, rompeu relações com o poder central, suspendeu a cobrança de impostos e impôs independência ao seu município. Uma intervenção do Estado teria provocado um morticínio fatal como o que ocorrera em São José do Duro (hoje Dianópolis, Tocantins) com o levante de Abílio Volney em confronto com tropas estaduais, fato que mereceu o famoso romance O tronco, do escritor Bernardo Élis.

Na verdade – segundo ressalta seu Nem Falcão, antigo morador de Sítio d´Abadia – o coronel Ornelas era um grande negociador e não um valentão. – O que acontecera, de fato, foi um acordo entre ele e o então presidente do Estado, o Velho Totó Caiado, pelo que o cargo a que fora eleito de 3º vice-presidente, ficaria ocupado pelo coronel José Francisco dos Santos, de Posse, e Ornelas teria, como teve, em compensação, a independência do seu município. Este acordo durara onze anos – conclui seu Nem. (Essa informação contradita a anterior em relação à classificação do cargo de vice-presidente e à mencionada gestão do histórico Totó Caiado. Mas a versão do fato não muda, pois virou folclore).

Para exemplificar o talento diplomático do coronel Joaquim Gomes Ornelas, Nem Falcão conta ainda que certa feita ele fez evitar um morticínio em Sítio conseguindo contornar um confronto armado entre os coronéis Félix Pereira de Moura, proprietário da fazenda Torto, e o coronel Joaquim Teixeira Mariz, proprietário da fazenda Larga. Encontro marcado para um ajuste de contas que aconteceria no centro da cidade. Jagunços de um lado, concentrados na rua de baixo, jagunços de outro lado, concentrados na rua de cima. Mais uma vez o coronel Ornelas atuou como apaziguador (era genro de Joaquim Mariz e sua esposa, prima de Félix de Moura).

Neto de Joaquim Teixeira Mariz, e morador em Sítio d´Abadia até 1987, seu Osvaldo Mariz – também parente do coronel Ornelas – recorda-se de uma famosa briga entre seu tio João Duque e o major Clemente, na Bahia, por ter perdido a eleição em Carinhanha em 1919. João Duque veio em busca da proteção do coronel Ornelas, que mandou vir para Sítio d´Abadia a família do seu primo, juntamente com outras famílias que aqui se estabeleceram, sob sua custódia. Os Mariz voltavam periodicamente à Bahia para retomar a luta pelo poder. Em 1920, “foram cinco dias de fogo em Carinhanha” – recorda seu Osvaldo – “até que, em 1921, afinal, João Duque retomou a cidade numa represália com 800 homens.” Por trás dessa vitória, o apoio do coronel Ornelas.

Coronéis de Posse e o folclore

Antigos coronéis de Posse permanecem na memória do povo como personagens da literatura oral, dentre eles, o coronel Augusto José Valente, famoso caçador de onça, e o coronel Rosulino Nunes, contador de causos fantásticos que inspirariam verdadeiras obras de ficção. Ambos exerceram a função de juiz municipal.

Três outros coronéis tornaram-se mitos no folclore regional. O primeiro – Argemiro Antônio de Araújo – destacou-se pela habilidade diplomática. O segundo – José Francisco dos Santos – passou para a história como portador de riqueza associada à concentração de poder. E o terceiro – Pedro José Valente de Santa Cruz – ficou famoso por sua habilidade maquiavélica.

O coronel Argemiro, que sobreviveu aos demais, vem da mais antiga geração possense, entrelaçado à família Balduino, dos pioneiros da cidade. Foi o homem público que mais viveu em Posse, sempre ligado ao poder, embora sem exercer nenhum cargo eletivo. É mencionado no livro Lugares e pessoas (1948), do cônego José Trindade da Fonseca e Silva, em crônica histórica assinada pelo padre José Francisco, que acompanhou em 1921, o bispo Dom Prudêncio em visita pastoral à cidade de Posse. Observa o cronista que a antiga villa não tinha médico (só encontrado à época, em Januária, daí 60 léguas) e que, em Posse, dois homens sabiam muito bem receitar e tratar: José Balduino de Souza Décio e Argemiro Antônio de Araújo – “os quais foram incansáveis nos seus serviços” – conclui.

O coronel José Francisco dos Santos chegou a ser eleito 3º vice-presidente do Estado, em 1929/30, ao que consta, em lugar do coronel Joaquim Gomes Ornelas, de Sítio d’Abadia. Presume-se que tal fato tenha gerado antigas dissensões políticas entre Posse e Sítio. Os nomes de José Francisco dos Santos e Pedro de Santa Cruz são lembrados, por sua vez, como protagonistas de uma crise política que ocorreu em Posse em 1937 e teve repercussão estadual. Na condição de fiscal de rendas do Estado, Pedro de Santa Cruz (procedente de São Domingos), procedia a uma rigorosa cobrança de impostos e tal fato desagradou (e até atingiu) o então comerciante e prefeito municipal de Posse, José Francisco dos Santos, de quem Pedro tinha sido amigo e correligionário.

Dado ao seu desentendimento com o coronel José Francisco, os amigos deste apelidaram Pedro Santa Cruz de Pedro Salta Cruz, depois Pedro Santanás, afinal Satanás, e promoveram uma serenata maldosa o com fito de expulsá-lo da cidade. Foram nove dias de serenata à janela de Satanás, com batuques de latas e tambores, tiros e chocalhos, gritos e palavrões, obrigando o fiscal a fugir disfarçado de mulher, na calada da noite. Pedro Santa Cruz foi ter na capital com o então governador Pedro Ludovico Teixeira, à busca de garantias. Voltou com tudo: acompanhado de força policial e do juiz de direito da comarca. Sobre esse episódio, ver o livro deste autor, O processo de Satanás – um rábula diabólico em Posse (Goiânia: Kelps, 2000).

A passagem da Coluna Prestes

Quando em 1925 a Coluna Prestes atravessou os municípios de São Domingos, Posse, Sítio d´Abadia, de passagem por Mambaí e outros lugares existentes à época, foram os coronéis (únicos dotados de estrutura de segurança) que serviram de escudo da população indefesa e atemorizada. Reinava um clima geral de insegurança. A notícia da revolta encabeçada por Carlos Prestes espalhava o terror por toda parte e famílias inteiras refugiavam-se em lugares inóspitos buscando esconderijos para escaparem ao encontro com os revoltosos. Esse fato foi mais tarde folclorizado e virou “chula” na boca do povo: “Quem foi que disse que a revolta é-vem, / capando os home e as muié também?”

Faziam parte da comitiva de Luiz Carlos Prestes, Juarez Távora, Miguel Costa, João Alberto, Djalma Dutra e Padre Maneco, este de Goiás Velho, que se juntara ao grupo para manifestar-se contra o governo. Os revoltosos eram tidos (e temidos) como uma escória de patifes que praticassem todo tipo de atrocidade, aterrorizando a gente pacata dos sertões.

O fato é que a Coluna Prestes fora prejudicada pela infiltração de um grupo paralelo em ação programada para confundir o povo e infundir o medo contra a intentona comunista de Carlos Prestes. Esse grupo marginal devastava fazendas, matava gado e deixava o povo em polvorosa, como enviados do demônio ou gênios da maldição. Notícias atrozes faziam estremecer os corações dos homens e das mulheres. Presumindo que estas corressem menos riscos, os maridos fugiam deixando para trás suas esposas, com a renca de crianças, que ficavam a descoberto como alvo dos revoltosos.

O povo mal sabia o que significava a marcha de Carlos Prestes, consequência da rebelião dos tenentes que se insurgiram contra a situação política brasileira comandada por latifundiários que sustentavam uma estrutura social injusta. É como se o Brasil vivesse ainda na época feudal. O tenentismo (assim chamado esse levante) foi de fato um movimento revolucionário que contribuiu para a queda da República Velha representada pelas oligarquias dominantes no país. Ressalta Anita Prestes, filha do líder comunista, em seu livro A Coluna Prestes (1991, p. 73) que “o tenentismo vinha preencher o vazio deixado pela falta de lideranças civis aptas a conduzirem o processo revolucionário brasileiro que começava a sacudir as já caducas instituições da República Velha”.

Com as incursões iniciadas pelo interior do país, Carlos Prestes viu de perto o estado de miséria em que se encontrava o povo brasileiro e resolveu radicalizar sua luta iniciando o movimento comunista. (Ou, como alguns preferem, já preconizava a revolução comunista ao iniciar sua luta). Na Bahia esboçara-se resistência armada. Prestes intentaria tomar esse estado e em seguida outros, até dominar a situação política do país. No leste goiano, indefeso, os revoltosos foram até bem recebidos por alguns coronéis, que usavam de tática diplomática, tentando evitar a iminente invasão de suas propriedades.

Astúcia do Coronel Argemiro

No contexto regional, os homens de poder eram, em Mambaí (antigo Riachão) – coronel José Francisco Mariano, em Iaciara – coronel Onofre Gomes da Fonseca, em Sítio d´Abadia – coronel Joaquim Gomes Ornelas (que havia proclamado a independência de seu município), em Posse – coronel José Francisco dos Santos, que veio a ser deputado estadual (11ª legislatura) e eleito 3º vice-presidente do Estado (1929-1930), na gestão Alfredo Lopes de Moraes, e outros nomes dentre os já focalizados na tradição política de Posse, anteriores à Revolução de 1930. Com especial diplomacia, o coronel Argemiro Antônio de Araújo, de Posse, encarregou-se de receber a comitiva de Carlos Prestes fora da cidade, simulando que se encontrava de viagem. Ofereceu a seus camaradas animais e víveres, em seguida, indo refugiar-se em sua fazenda à beira do rio Paranã, até passarem os dias tumultuosos.

Vale lembrar uma histórica carta do comando da Coluna Prestes (reproduzida no livro de Anita supracitado), escrita em Posse e endereçada ao deputado João Batista Lusardo, em setembro de 1925, assinada pelo general Miguel Costa, coronel Luiz Carlos Prestes e tenente-coronel Juarez Távora, dando conta de que a Coluna entrara em Posse, “sem encontrar resistência”. Na Bahia, a Coluna Prestes sofrera consideráveis perdas e louvava-se do bom tratamento recebido durante sua marcha rumo ao norte, em direção a Sítio d´Abadia, Riachão e Posse. Daí confessava sua firmeza de ânimo para prosseguir a marcha “através de vários estados do Brasil”.

Revoltosos, nem

tanto

Há muitas histórias bizarras que colhemos em São Domingos sobre a passagem da Coluna Prestes. O município tem um território privilegiado de pedreiras e grutas com abertura de suspiros, onde os esconderijos pareciam mais seguros em relação aos revoltosos, porém mais perigosos em relação às onças que também buscavam refugiar-se nas mesmas locas. Aí se duplicava o medo: das onças e dos revoltosos. Mesmo depois da volta ao redil, muitas pessoas ficavam possuídas de uma espécie de neurose de guerra.

Apesar do pavor que os revoltosos infundiam na população, em São Domingos fez-se exceção à regra. Ouvi algumas pessoas que a eles se referiam com simpatia. Talvez tivessem intenções maldosas, mas conhecendo a timidez do povo (ou talvez sugestionados pela beleza paisagística do lugar), passaram, em vez de saquear, a defender a cidade. Alguns deles resolveram abandonar o grupo (talvez nem pertencessem à Coluna Prestes) e fixaram residência em São Domingos, aí se casando e formando família. É o caso de um desses revoltosos que tinha sido escalado para servir de sentinela (vigia) da família Honorato (quem conta é o doutor João Honorato Pinheiro, médico filho da terra): “Foi um revoltoso quem pedira a minha mãe, dona Mundinha, para que batizasse minha irmã com o nome de Irene, explicando que a menina era bonitinha e que o nome seria uma homenagem à sua noiva, chamada Irene, que tinha deixado no Nordeste.” Povo tão bom, tão hospitaleiro, tão fraternal, os dominicanos aplacavam até mesmo a rudeza dos cangaceiros, humanizando-os e ensinando-lhes o amor e a convivência social: pobres homens recuperados que passaram a fazer parte da história da cidade.

Em Posse viveram homens valentes que diziam ter sido jagunços do coronel Horácio de Matos, na Bahia, dentre eles, o popular Rosário Calango, que morou no sítio da Lagoa na condição de agregado de Ernesto Antônio de Araújo. Segundo relata doutor Ubiratan Fernandes, por ouvir dizer, Rosário Calango certa vez montara uma estratégia para capturar um desafeto do coronel para quem trabalhava. Fantasiou-se de jumento, colocou um chocalho ao pescoço, posicionou-se de quatro e ficou balançando o cincerro, indo e vindo à frente da casa do dito cujo, que toda noite costumava deixar uma ração de milho para o jumento que vinha comer à sua porta. Ao sair, o “contra-coronel”, desconfiado e malicioso, achou um tanto estranho o ritmo de batida daquele chocalho e ao invés de sair para tratar seu jumento, meteu bala na escuridão. Rosário Calango saiu em disparada e dizem que foi assim que veio parar em Posse. É como diz o folclore: “Lampião diz que não corre, / Lampião é corredor, / Lampião subiu a serra / que a poeira levantou.”

(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa. E-mail: [email protected])

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