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OPINIÃO

Bernardo Élis revisitado

Muito cedo, Bernardo Élis leu Euclides da Cunha e impressionou-se com Os Sertões, que passou a ser desde então uma espécie de referência para o jovem que sonhava tornar-se famoso, escrevendo. Porém, o que o levou a escrever foi o desejo de vingar Goiás do seu anonimato dentro da literatura brasileira.

Hoje já não é possível falar em literatura brasileira sem citar Goiás. Conquistamos efetivamente um lugar, na literatura nacional, com a colaboração de autores como José J. Veiga, Gilberto Mendonça Teles, Afonso Félix de Souza, Heleno Godoy, Antonio José de Moura, José Godoy Garcia...

Eu me considero mais contista do que romancista, confessa Bernardo Élis, enquanto Doutora Amália conversa animadamente com a dona da casa. Como contista, minha elaboração é mais colaborativa. Eu não creio que se crie do nada. Para mim, criar é recriar.

Como escritor, costuma tomar quase sempre como ponto de partida a lembrança de muitas histórias que ouviu ao longo da existência, razão pela qual diz que que o seu conto é mimético, tradicional, composto de começo, meio e fim. Para alcançar meu objetivo, lanço mão de vários recursos, líricos, psicológicos, críticos... Geralmente, minha novelística é baseada em fato histórico ou de denúncia da situação existencial do sertanejo.

Quando escreveu O Tronco, em 1950, inspirado em um episódio vivido pelos avós maternos de Alcyone Abrahão, estava influenciado pelo Realismo Socialista, que começava então a popularizar-se no Brasil e que retomava a novelística seca, que teve em O Quinze, de Rachel de Queiroz, sua obra mestra.

Naquele tempo, a população rural de Goiás era muito grande. Dizia-se, então, que Goiás era uma terra de gente em que a gente não tinha terra... Atualmente, eu me acho um pouco fora de moda, em virtude das teorias que presidem a literatura, agora submetida a análises acadêmicas muito herméticas que desencorajam a leitura.

Como disse, estou preocupado com a transmissão de ideias, mas sempre percebi que a literatura é algo visceral e que a coerência é imposta pela circunstância da nossa formação pessoal. Sou um escritor que valoriza os insights. Uma vez me ocorreu uma frase – “a noite tinha um cheiro de defunto”, que me impressionou e a princípio eu pensei que não era minha. Talvez, por isso, tenha se tornado, para mim, uma ideia fixa que resultou no conto “Honorato”.

Influenciado em seu começo por doutrinas de esquerda, lia e admirava Jorge Amado, Amando Fontes, José Lins do Rego, de quem, aliás, se considera um discípulo. Acho-o, ainda hoje, um autor injustiçado. Não sei por que José Lins não alcançou a projeção de outros escritores brasileiros de sua geração.

Escrevi O Tronco quando a tecnologia já avançara muito. No entanto, as populações sertanejas ainda viviam num atraso ainda maior do que a dos portugueses quando aqui chegaram, no século XVII. Durante muito tempo eu pensava com uma certa amargura que não havia lugar no mundo para o sertanejo.

Muito tímido, eu tinha a ambição de ser um escritor de renome. Queria fazer uma literatura que fosse lida pelo povo, porém eu estava desinformado. O povo não lê. O livro vendeu rapidamente, mas foi a classe média que o leu e consagrou. Hoje, O Tronco, com meio milhão de exemplares vendidos, está na décima edição.

A ação de O Tronco se passa, mais ou menos, em 1919. Ao escrevê-lo, fiz uma grande pesquisa, ouvindo as pessoas envolvidas no episódio histórico e consultando processos e documentos. A criação, porém, se estriba na emoção. É fundamentalmente emoção. Minha literatura é neo-realista. Não sou subjetivista nem cultivo o monólogo interior.

Quando escrevi o primeiro livro, Ermos e Gerais, bem-recebido por leitores e críticos, disse a mim mesmo que tinha de escrever o segundo. Meu raciocínio é, como vê, cartesiano. O que me encanta, porém, é a incompreensão que domina entre os homens, esse antagonismo que há e persevera entre as pessoas.

Revelo que a leitura de A Enxada, mais do que a de qualquer um escrito seu, deixou-me impressionado. Uma obra-prima contundente e dramática que nos coloca como participantes de um drama humano pungente. Bernardo sorri, contrafeito. Foi um conto que escrevi com muita paixão, um pouco antes de O Tronco, revela, depois de algum tempo. Hoje o seu êxito, de certa forma, me repugna. Mas, por favor, não quero que você escreva isto...

Nelson Pereira dos Santos tem obsessão por esse conto e quer filmá-lo, mas ainda não obteve os recursos necessários. Fazer um filme representa grande investimento. Assim fica difícil concretizar esse projeto.

Sou de uma família católica. Fui muito religioso, mas hoje já não o sou mais. O que me fez perder a fé foi o descobrir que Deus não ajuda ninguém. A Igreja me impôs um grande sentimento de culpa. Procurei, então, conforto na filosofia. O fatalismo resulta da nossa incompreensão das coisas.

A morte, absolutamente, não me sensibiliza. Parece-me, antes, um passo natural transformado em horror pelas igrejas. Toda igreja usa a morte como um elemento e horror. Sou, dá para perceber, materialista e acredito que voltamos aos elementos naturais que nos forjaram. Não sou um indagador metafísico nem me preocupo com a vida depois da morte.

Bernardo confessa ainda que as coisas de Goiás não comovem ninguém. Porém, ele próprio parece comovido quando indagado sobre o seu relacionamento com a escritora Alcyone Abrahão. Na qualidade de amigo da família, eu conheci Alcyone, para usar de um termo literário, desde a mais tenra idade...

Sempre me impressionou nela a inquietação espiritual, o inconformismo com a rotina da existência e, sobretudo, o tom irônico com que enxergava a vida e os seus problemas. Porém, sobrepujando tudo isso, o que se percebia nela, antes de tudo, era um grande amor a Goiás. Era um dos valores da sua geração, que vejo de uma maneira muito grata.

Ao acompanhar-me até o automóvel, estacionado diante de sua casa, Bernardo Élis, cujos olhos lembram-me duas águas marinhas, sorri e me diz que, nessa entrevista, muitas perguntas lhe foram feitas pela primeira vez. Você me fez vencer a timidez e falar muito. Sinceramente, senti-me estimulado. Espero que me visite outras vezes...

Fragmento de O Ouro de Goiás, páginas 91-94 (Instituto José Mendonça Teles/Editora Kelps, Goiâinia, 2012)

(Franklin Jorge, escritor e diretor da Sala Natal/Secult (RN) [email protected])

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