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OPINIÃO

Capoeira como fator de integração cultural Brasil-Itália

No mês de agosto último, Goiânia sediou um campeonato internacional de capoeira que homenageou a figura mítica de Mestre Bimba, numa promoção da Federação Goiana de Capoeira, tendo à frente o Mestre Pança (nome de guerra de João Salustiano) e sob coordenação do Mestre Deputado (nome de guerra de Walce de Souza), ambos discípulos do saudoso Mestre Bimba, criador da Capoeira Regional. Goiânia tornou-se referência dessa modalidade de capoeira trazida para Goiás, como legado de Mestre Bimba, que aqui viveu seus últimos dias.

Conforme acentuou este jornal, não fosse a globalização que interligou o mundo via internet e ninguém acreditaria que uma forma de luta inventada por escravos no Brasil, como é o caso da capoeira, viesse hoje a competir com outras formas de lutas estrangeiras. No referido campeonato destacou-se a presença maciça de italianos que hoje se dedicam a esse esporte como forma de luta, acrobacia e arte de expressão corporal, que bem combina com o temperamento latino desses conterrâneos do heróico Giuseppe Garibaldi, que também poderia ter sido um bravo capoeirista ao frontear suas lutas libertárias.

A antropóloga italiana Rosamaria Susanna Barbàra, observa na introdução ao seu livro “La Capoeira” (Milão/Itália: Xenia Edizioni, 2006), que “A capoeira, a luta-dança brasileira, é hoje conhecida e praticada em todo o mundo por vários motivos: muitas pessoas sentem-se atraídas pelas performances acrobáticas ou então pela agilidade dos lutadores e além disso, pela música e pala possibilidade de entrar em um mundo um tanto misterioso, místico que nos coloca em contato com alguma coisa de antigo e de secreto, que fascina e intriga”.

Assim como muitos brasileiros buscam a Itália para aperfeiçoar-se em diversas áreas de conhecimento, os italianos por sua vez buscam o Brasil, atraídos pelos mitos de uma cultura popular cheia de costumes exóticos, cores tropicais, manifestações folclóricas, cantigas e cantares que acompanham o jogo da capoeira, ritmos e danças primitivas que instigam o espírito latino cheio de lirismo e criatividade.

O intercâmbio cultural Brasil-Itália vem de longe e por diversas formas, desde a tradição da cultura clássica cultivada, por exemplo, no campo do direito, das ciências humanas, das letras e artes, até a atual cultura tecnológica em que, apesar das benesses do progresso, ameaça também robotizar-nos como peças de uma engrenagem movida por controle eletrônico.

Ao som de um berimbau

Foi ao som de um berimbau que este escriba atraíu a atenção dos italianos quando, no ínicio dos anos 70, frequentava a Universidade Italiana para Estrangeiros de Perugia, capital da Úmbria (região central da Itália), que está em relação a Roma, capital do país, em igual importância como Goiânia, capital de Goiás (ao centro do Brasil), está para Brasília, nossa capital federal.

Eu integrava um grupo de estrangeiros que faziam exibições de instrumentos musicais típicos de seus respectivos países e, como já escrevi em artigo anterior, ao retirar os sons do meu berimbau, logo era acompanhado com batidas de palmas pela galera eletrizada, ao ritmo de uma cantiga de capoeira a que os acompanhantes respondiam em coro: Ô Inácio! Ô Inácio!                                                                                                 – Ô Inácio! Ô Inácio! Mulher parida não come! – Ô Inácio! Ô Inácio! Parida do mesmo dia! – Ô Inácio! Ô Inácio! Se ela come ela morre! – Ô Inácio! Ô Inácio! E o filho não se cria!

Quanto mais incompreensível a letra e mais ritmada a cantiga, mais contagiante parecia a emoção da plateia, que continuava a bater palmas mesmo quando eu parava de cantar. Hoje os italianos tocam berimbau e jogam capoeira tão bem quanto os brasileiros, graças à atuação de muitas academias de capoeira espalhadas pela Itália, inclusive, a Academia Bimba Meu Mestre, instalada no Viale Trissino n° 24, Centro, da cidade de Vicenza (próximo à Veneza), sob coordenação do casal de arquitetos Luca Biancoviso e Carlotta La Jacona, cujo filho Tommaso (foto), com apenas três anos de idade, já é um exímio tocador de atabaque.

O Centro Cultural Bimba Meu Mestre, de Vicenza, promove, além da prática de capoeira, atividades culturais diversas, tais como cursos de folclore e rítmica, exibições de danças típicas brasileiras, palestras e lançamentos de livros, a exemplo do citado livro “La Capoeira”, de autoria da antropóloga italiana Rosamaria Susanna, que se especializou em antropologia de danças típicas no Brasil.

Perguntei ao casal Luca-Carlotta, acompanhados do educador Filippo e tendo em sua companhia o etíope-italiano Tesfaye, como nasceu neles o interesse pela prática da capoeira. – Desde o ano 2000, quando conheceram, através do brasileiro Eduardo, o capoeirista baiano Mestre Cobra, que estava ministrando aulas dessa luta brasileira em Pádua. – A convite do casal de arquitetos, Mestre Cobra transferiu-se para Vicenza, onde em parceria abriram um primeiro curso de ensino sistemático de capoeira que durou até 2005. Luca Biancoviso e seu colega Filippo foram os primeiros graduados em capoeira, ainda não definida para eles, entre as modalidades Angola e Regional. Em seguida, por ocasião de um “workshop” realizado em Vicenza, entraram em contato com Mestre Nenéu, filho de Mestre Bimba, e desde então se iniciaram na especialidade da Capoeira Regional, a que deram continuidade num curso ministrado em 2006, na Itália, por Mestre Deputado, ex-discípulo de Mestre Bimba, radicado em Goiânia e que é sempre convidado a ministrar cursos intensivos de capoeira no exterior.

Emílio Vieira 5

Capoeira nas escolas públicas

A Academia de Capoeira Bimba Meu Mestre, na Itália, desde 2011 vem desenvolvendo um projeto de introdução da prática de capoeira nas escolas públicas municipais mediante convênio firmado com a Prefeitura de Vicenza. Assim como no Brasil reina uma tendência de cultivar esportes estrangeiros, na Itália a capoeira vem se tornando um dos esportes prediletos, graças à sua eficiência como atividade de educação física e como arte de expressão corporal, associada aos ritmos e danças típicos do folclore brasileiro.

Nas apresentações das academias, geralmente acompanhando as exibições de capoeira, são executados números de danças como o Maculelê e o Samba de Roda, além de outros que caracterizam festas típicas da Bahia, mas que já pertencem a todo o Brasil, onde há variantes da mesma matriz do samba em suas diversas modalidades. Como exemplos, citemos o Tambor de Crioula (do Maranhão), o Samba de Roda (da Bahia), o Batuque (de São Paulo), o Bambelô (do Rio Grande do Norte), o Virado (de Alagoas), o Samba do Morro (do Rio de Janeiro) e esse típico lundu que chamam de Samba duro de todo o Brasil.

Certamente os italianos ampliarão seu repertório incluindo também danças e ritmos típicos do folclore italiano (um exemplo seria a Tarantella, que se confunde com a nossa Mazurca), como em outros lugares já vêm incorporando à capoeira acrobacias e outras formas de exibições de artes circenses, ao modo como fazem os idealizadores da chamada Capoeira contemporânea. Mas essa não é a tendência da Academia Bimba Meu Mestre, de Vicenza, que prima pela modalidade da Capoeira Regional.

Tocando berimbau e pandeiro, caxixi ou tambor, o professor de capoeira Elvis (nome de guerra de Luca Biancoviso), auxiliado por sua esposa e também capoeirista Carlotta (nome de capoeira, Cigarra), animam as aulas das crianças em Vicenza iniciadas na magia da Capoeira Regional, com espírito de investigação em que se desenvolvem tendências de assimilação dos ritmos ítalo-brasileiros, no campo da capoeira, incrementando o interseccionismo cultural entre o Brasil e a Itália.

Com esse objetivo é que o casal de capoeiristas, Luca (Elvis) e Carlotta (Cigarra) mantêm sua academia em Vicenza e em função disso já vieram diversas vezes ao Brasil, e especialmente a Goiânia, onde buscam especializar-se na modalidade da Capoeira Regional tendo como principal instrutor o Mestre Deputado, que é o mais expressivo seguidor de Mestre Bimba, criador da Regional baiana.

Capoeira com finalidade educativa

Perguntei ao casal de arquitetos Luca-Carlotta qual o sentido mais amplo que veem na capoeira, além de luta de defesa pessoal, esporte ou arte de expressão corporal. – Tenho para mim uma definição de capoeira como “o espelho do jogo da vida” com o qual me identifico – responde Luca Biancoviso. Carlotta declara, por sua vez, que se deixou envolver pelo entusiasmo de Luca que ao descobrir a capoeira, parecia ter encontrado sua própria identidade. E que descobriu também ela, na capoeira, um sentido educativo, tanto que notou uma influência positiva na educação de seu filho Tommaso, que ainda com três aninhos de idade, já se entretém com essa forma de arte e lúdica que lhe desperta energia vital.

Nessa mesma pauta, manifesta-se o etíope-italiano Tesfaye, dizendo que também para ele a capoeira representa uma motivação de vida e um meio de integração entre as pessoas e que isso deveria ser ampliado entre as comunidades humanas. Nesse sentido, arremata Filippo (nome de guerra Pedagogo), que vê na capoeira um modo de sentir, pensar e agir que alarga as ações cotidianas a uma compreensão maior da vida, como ensinava Mestre Bimba. Lembra a propósito uma frase que ouvira de Mestre Decânio, um dos mais antigos alunos de Mestre Bimba na Bahia e que fora seu médico pessoal: –Mestre Bimba era um construtor de homens. – Cada vez que falo com os antigos alunos de Mestre Bimba, continua Filippo – vejo que todos ressaltam suas qualidades morais. Em sentido mais amplo: todas as pessoas que passam pela academia e se encontram no mundo da capoeira, como na vida, tornam-se pessoas melhores, e eu, particularmente sinto a responsabilidade de uma vez formado, ajudar a formar também bons cidadãos.

Destacando a projeção da capoeira na Itália em comparação com outras modalidades esportivas, o professor Luca Biancoviso, à frente da Academia Bimba Meu Mestre de Vicenza, arremata: – À primeira vista, a capoeira foi recebida pelos italianos como uma forma de agregação da juventude, pelo seu aspecto exótico e sensual. Até hoje interessa mais como esporte e, de certa forma, como acrobacia, devido ao efeito visual de seus golpes. – Nós da Academia Bimba Meu Mestre é que tentamos infundir um conceito educativo na prática da capoeira, que passou a ser vista, pelo menos na nossa região, como uma forma de educação física que se presta também aos objetivos da formação integral.

Diante dessas declarações, fico a imaginar que se Mestre Bimba tivesse vivido na Itália, onde já vêm estagiando muitos de seus discípulos, ter-lhe-ia acontecido tudo diferente de como viveu e morreu no Brasil, pobre e desamparado. Mas ele mesmo me asseverou certa vez: –Emílio, os pioneiros nunca levam vantagem. Quem sabe tirar vantagem são os exploradores. Ele não queria dizer com isso que se sentia explorado, mas que ele mesmo não sabia explorar a capoeira como forma de ganhar dinheiro. É como diria Cícero, o célebre orador romano: – O tempora! O mores! (Oh tempos! oh costumes!).  – Melhor assim, Mestre Bimba, a sua glória não precisa mais dos homens!

(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa.                                                                                         E-mail: [email protected])

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