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OPINIÃO

O lugar da escravidão na formação capitalista brasileira

“...Este açúcar era cana

e veio dos canaviais extensos

que não nascem por acaso

no regaço do vale.”

(Gullar. Ferreira, O açúcar. 1975)

O capitalismo brasileiro só pode ser, de fato, compreendido a partir do fundamental instituto da escravidão. Aliás, sem esse amplo, farto e grandemente rentável dispositivo sócio-econômico, não teríamos nosso capitalismo tal e qual conhecemos porque se está a tratar de quase quatrocentos anos de trabalho compulsório, acumulado, desregulado, submetido a todos os rigores de um tempo, sem qualquer tipo de mediação ou controle estatal e tendo apenas o exercício cultural de algum uso ou costume como miúda e tímida condicionante humana ante ao terror genocida e imbecilizante da escravidão.

Me assusta como alguns analistas econômicos buscam querer compreender a atual crise econômica sobretudo, e principalmente, em fatores eminentemente externos. É como se o passado brasileiro estivesse definitivamente passado e não operasse objetiva e subjetivamente no comportamento social, no trabalho cotidiano, nos níveis de integração local, regional e nacional e na própria qualidade das relações sociais que produzimos e reproduzimos no curso da vida diária.

É que se há algo que não faz o menor sentido no Brasil é o debate de tempos. Tempos idos, passados, vividos, presentes e futuros são exata e igualmente a mesma coisa. As estruturas sociais, políticas e econômicas do país; o patriarcado; o assalariamento ou neoescravidão; a ausência de controle social e público a respeito das “barbáries nossas de cada dia” tratam de jogar por terra distinções essenciais entre passado, presente ou futuro. O Brasil... Não admite tempos!

O professor Celso Furtado (1920 - 2004) em rigorosa interpretação da lógica colonial acorrida na América portuguesa irá pôr em atividade teórica o dispositivo pedagógico da triangulação entre trabalho, produção e comércio e que sob muito bem azeitada dinâmica dos territórios, envolvia a vinda de pessoas negras e escravizadas da África evidentemente a partir das colonias portuguesas (Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau) onde a produção de trabalho objetivo no Brasil era, enfim, comercializada, pela metrópole de segunda grandeza de Portugal para toda Europa.

Furtado apresenta um modelo sócio-produtivo estruturado por funções ou seja, a esquemática territorial onde cabia, sobretudo, ao individuo africano, agora desterritorializado para os trópicos e sobejamente reificado ao máximo de sua condição humana às maiores e mais intensas inversões de trabalho.

Que trabalho? De fato, ainda falta muito o que compreender sobre essa tipologia laboral apetecida nos interiores da colônia portuguesa do Brasil; cuja gestão metropolitana de outro maneira, era duramente submetida às determinações do império bretão.

Desta feita, o trabalho realizado por aqui expressa não só as contradições nevrálgicas do trabalho escravo, mas também e da mesma forma, é parte local e cotidianizada e que, ao mesmo tempo, afirma e potencializa uma esquemática social e produtiva que caracteriza a própria geopolítica de então.

Em outro paralelo, o trabalho, substância essencial da marcação territorial, é além de duramente penitenciado pelo tacão escravista, condição axial para o estabelecimento assimétrico, portanto, classista e com base na lógica binária da metrópole/colonia ou, conforme nos ensina Celso Furtado, do centro/periferia.

A metabolização do trabalho na feitura do real aviltante e aviltado da colônia é abordado pelo historiador marxista Caio Prado Júnior (1907-1990) em seu clássico “História Econômica do Brasil” a partir do torvelinho latifúndio/trabalho escravo. É essa parelha que irá garantir a própria formação social, política e econômica do país no período de então, mas também que será peça fundamental para a definição de nossa modernidade enviesada de estados paralelos, marginais, criminais e contidos em um suposto macro-estado.

Esse articulado, de outro modo, coerente e possível no espaço/tempo da formação nacional do país engendra dinâmicas econômicas, estruturações sociais, burocracias específicas, relações internacionais igualmente específicas, linguagens, formas de percepção e um modo de ser que, conforme se percebe no transcurso cotidiano de nossa contemporaneidade, é responsável por nada mais, nada menos do que quarenta mil jovens negros, evidentemente pobres, e assassinados ao ano.

O sistema sócio-produtivo colonial e escravista foi a máquina civilizacional que nos fez tal qual somos; que definiu nossas mediações cotidianas e que nos incutiu sensibilidades, comportamentos e identidades. Em um paralelo, a compreensão da lógica fundadora da civilização brasileira é a que consumiu cinco milhões de indígenas, mais uma cifra indefinida de quase dez milhões de pessoas escravizadas, mais um massivo extermínio ambiental e, não por acaso, ainda em curso e que custou toda a Mata Atlântica que, por sinal, atingia o litoral nordestino.

A civilização brasileira é um mar singrado por militares portugueses; a civilização do genocídio e dos crimes ambientais. Nascemos do sangue e da cinza e somos, ao mesmo tempo, paixão e ódio; luxuria, prazer e desprezo; lirismo e amor incondicional por todas as formas de guerra. Somos o que ninguém jamais foi e o que ninguém jamais será.

A triangulação sócio-produtiva de Furtado e o binômio trabalho escravo/latifúndio de Prado Júnior expressam e complementam saberes e compreensões acerca de um mesmo fenômeno de dominação, submissão e dependência nacional e se firmam como categorias ou vigorosas possibilidades de compreensão de nosso “genos”.

Finalmente, a organização capitalista brasileira deita raízes no trabalho intensamente explorado e apropriado de milhões de pessoas escravizadas; mas também das mulheres em suas jornadas triplicadas de trabalhos; dos indígenas despossuídos de suas terras; dos agricultores familiares que sequer tinham acesso ao que produziam e; na mais intensa e conflituosa beligerância vivência e convivência entre campo e cidade e que já fora vista nesta parte ocidental do mundo.

Eventos como a Guerra de Canudos, a Cabanagem, a Balaiada, as guerras do Contestado dentre outros conflitos que existiram e que ainda existem indicam a impossível unidade entre brasileiros do campo e da cidade, entre as coisas e os mundos dos campos e das cidades e, estejam certo, a escravidão e os ódios e ressentimentos advindos dessa lógica de morte é parte essencial e restauradora do “diálogo impossível” no dizer de José de Souza Martins e que marca a sangrenta civilização brasileira.

(Ângelo Cavalcante, economista, cientista político, doutorando em Geografia Humana (USP) e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), campus Itumbiara)

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