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OPINIÃO

Padroado Régio e sua influência no celibato sacerdotal

Houve tempo em que alguns padres constituíam família no Brasil. Isto principiou particularmente por ter nosso País sido colônia de Portugal. “Para recompensar os reis portugueses por sua luta contra os mouros e por espalhar o catolicismo pelo mundo, Roma lhes concedeu o padroado, isto é, o direito de indicar bispos, e outros privilégios menores referentes à administração eclesiástica. Dois desses privilégios assumiram grande importância no Segundo Reinado, o direito de recurso ao governo em questões de disciplina eclesiática e o direito do placet, isto é, de censurar todos os documentos provenientes de Roma, inclusive encíclicas. O padroado português foi estendido ao Brasil, cuja Constituição declarou a Igreja Católica religião do Estado e a única com direito a culto público. Padres e bispos eram funcionários públicos pagos pelo Estado. Em certo sentido, a Igreja no Brasil era mais dependente do Estado que de Roma.” A gente foi buscar tal passagem aí, que se acha entre aspas, na obra D. Pedro II, do acadêmico e historiador José Murilo de Carvalho.

A primeira página do Diário do Rio de Janeiro, número 7, quinta-feira, 9 de fevereiro de 1837, traz claramente o seguinte conteúdo:

“As prerrogativas da Coroa Imperial, na criação dos Bispos, consistem no privilégio ou direito de os nomear. Este direito, substituíndo as antigas eleições por concessões expressas da Santa Sé, com o título canônico de Padroado, por fundações e dotações, achava-se já inerente à Coroa, quando a Constituição que nos rege veio, no ano de 1824, canonizá-lo, sancioná-lo e ratificá-lo como direito político, declarando no seu art. 102 § 2º ser atribuição do Imperador, como Chefe do Poder Executivo, nomear Bispos e prover aos Benefícios Eclesiásticos.”

Esse casamento entre Igreja e Estado fazia com que, a partir da colonização, muitos religiosos se metessem em política.

“A distância de Roma também explicava em parte o fato de que o estilo de vida do clero estivesse bem longe do modelo de virtudes evangélicas. A maioria dos padres tinha filhos com concubinas, algumas delas suas escravas. O regente padre Feijó era filho de padre. O mesmo se dava com o romancista José de Alencar. O grande abolicionista José do Patrocínio era filho do vigário de Campos com uma jovem escrava.” Diz Carvalho.

Ao passo que o padre José da Silva e Oliveira Rolim (1747-1835), um dos conspiradores da Inconfidência Mineira, era amasiado com Quitéria Rita, filha da lendária Chica da Silva e do não menos lendário contratador de diamantes, João Fernandes de Oliveira.

O humilde e obscuro autor destas linhas aqui, pra exemplificar, é trineto do vigário Antônio Luiz Braz Prego, da cidade de Santa Cruz de Goiás. O Almanak Laemmert, 1909, 66º Anno, editado no Rio de Janeiro, F-20, referente à cidade de Santa Cruz, disponível pela hemeroteca digital brasileira, no Estado de Goiás, traz o seguinte registro: “Padre Antônio Luiz Braz Prego, Vigário da Freguesia, Cavaleiro do Hábito de Cristo e exímio pregador sacro.”

O grau “Cavaleiro do Hábito de Cristo”, deferido ao padre Prego, é uma significativa honraria concedida pela Ordem de Cristo, mais especificamente, pela Imperial Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo, ordem honorífica, originária em Portugal da Ordem Militar dos Cavaleiros de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, por sua vez, se diz herdeira das propriedades e privilégios da extinta Ordem dos Cavaleiros Templários. E tal vínculo assinala uma relação visceral com as sociedades maçônicas.

Não seria descabido afirmar terem muitos dos maçons se considerado herdeiros dos templários.

“Outro traço que marcava a Igreja brasileira era a relação amistosa com a maçonaria.” Salienta, aqui, em seu D. Pedro II, o acadêmico José Murilo de Carvalho. “Vários maçons pertenciam a irmandades religiosas, sem que isso causasse nenhuma espécie.”

Pedimos permissão à família do estadista Pedro Ludovico Teixeira pra fazer uma alusão. Maria Dulce Loyola Teixeira, casada com um neto do fundador de Goiânia, inclui o núcleo famíliar deste, em seu blog,  no rol da descendência do vigário de Santa Luzia (hoje, Luziânia, Goiás), João Teixeira Álvares. Dulce diz alí que “...a genealogia faz com que pessoas se conheçam, se tornem amigas, e mesmo distantes, estão entrelaçadas num mesmo objetivo familiar, graças ao nosso antepassado, padre João Teixeira Álvares, dito pai do Benedito”. O referido Benedito aí parece ser  José Benedicto Teixeira Álvares, pai do dramaturgo e médico goiano, João Teixeira Álvares, que, por sua vez, era pai de Pedro Ludovico.

Retrato enriquecedor que do padre João Teixeira Álvarez faz, em torno de 1819, a Viagem à Província de Goiás do naturalista Auguste de Saint-Hilaire diz que “sabia latim, francês, italiano e espanhol; conhecia os nossos melhores escritores do século de Luís XVI e possuía uma seleta biblioteca com várias centenas de volumes, o que no país era uma raridade”.

Nada havia portanto de constrangedor, nesse aludido contexto colonial e imperial aí, em ser filho, neto, bisneto ou até trineto de padre, porque tudo isso acontecia naquela realidade marcada pela supremacia da lei civil sobre o direito eclesiástico. E marcada ainda por acentuada influência maçônica. Nem há de ser vergonhoso agora, sob o Estado Democrático de Direito.

Seja dito que “...à formação brasileira não faltou o concurso genético de um elemento superior, recrutado dentre as melhores famílias e capaz de transmitir à prole as maiores vantagens do ponto de vista eugênico e de herança social”. Comparece Gilberto Freyre na sua indispensável Casa Grande & Senzala, página 444, da edição (1980) da Livraria José Olympio Editora. “Daí o fato de tanta família ilustre no Brasil fundada por padre ou cruzada com sacerdote; o fato de tanto filho e neto de padre, notável nas letras, na política, na jurisprudência, na administração.”

Mesmo porque a Igreja Brasileira reunia o que havia de mais refinado e seleto em termos de cultura e filosofia. A história precisa mais de árbritos benignos do que de magistrados implacáveis. Urge compreender o contexto histórico.

E compreender aqui o contexto histórico consiste em compreender a instituição do padroado régio de além-mar.

“Em Portugal, apesar da especial devoção à autoridade pontifícia (evidenciada no envio a Roma de embaixadas de obediência e na concessão a D. Afonso V, em 1460, por Pio II, do título de Fidelíssimo, tornado permanente no século XVIII), a Igreja sofria acentuada influência do Estado, que chegou a invadir-lhe a jurisdição própria (temporalidades).” Informa Hélio de Alcântara Avellar na sua História Administrativa e Econômica do Brasil. “Padroado régio era o controle das nomeações eclesiásticas pelo governo e a direção, pelo mesmo, das finanças da Igreja.”

Atentemos para o fato de que “diversas bulas foram precursoras do padroado régio (as já citadas Sane Charissimus, as duas Rex Regum, a Etsi Suscepti, especialmente), cujas concessões foram ampliadas em 1452, por Nicolau V (Dum Diversas).”

Avellar acrescenta a “importância fundamental, no estabelecimento do padroado, uma bula de Calisto III, de 13 de março de 1456 (a Inter Coetera, confirmatória da Romanus Pontifex, de Nicolau V, de 8 de janeiro de 1455), pela qual, dos cabos Bojador e Não até o Indo, 'toda a jurisdição ordinária, domínio e poder nas coisas espirituais somente' eram entregues à Ordem de Cristo (com a clara exclusão da administração temporal)”.

Expedem-se depois, para maior consolidação do padroado real, no reinado de D. Manuel, sob o pontificado de Leão X,  junho de 1514, as bulas Dum Fidei Constantium e Pro Excellenti Praeeminentia, aquela no dia 7, e esta última no dia 12.

“Em conseqüência, a Ordem de Cristo perdeu a jurisdição das novas terras adquiridas desde 1512 (embora conservando o padroado sobre as dignidades eclesiásticas, como as conezias, e a arrecadação das dízimas, com as quais o Estado mantinha a Igreja).” Diz Hélio de Avellar. “Quanto às terras adquiridas a partir de 1512, o rei recebeu o direito de apresentação, isto é, de apresentar ao Papa os novos bispos a serem providos, como chefe do Estado. Além disso, na sua qualidade de Grão-Mestre da Ordem, apresentava aos bispos os beneficiários das demais dignidades da Igreja (cabidos, capelanias, paróquias).”

Avellar salienta ter tais privilégios sido ratificados por outra bula, a Praecelsae Devotionis, de 3 de novembro do mesmo ano.

Nem sempre foi pacífica assim a aplicação do padroado cá entre nós brasileiros. Tudo porque, em 1846, Pio IX assumiu o pontificado. “O principal documento que marcou sua posição foi o famigerado Syllabus”, que nada mais foi que uma lista de oitenta erros, vinculada à encíclica Quanta Cura, editada em 1864. “O Syllabus declarava ilegal o placet, rejeitava a supremacia da lei civil sobre o direito eclesiático e condenava duramente os maçons.”

A despeito disso aí, o instituto do padroado passou ileso no Brasil até a República, uma vez que era um direito ou privilégio relacionado mais com a Monarquia.

Com efeito, o fim do regime do padroado se deu com a Proclamação da República em 1889. “Proclamada a República e publicados os decretos do governo provisório separando a Igreja do Estado, o casamento civil, a secularização dos cemitérios e outros atentatórios às crenças católicas, cogitaram imediatamente os bons católicos em se agruparem para formarem um partido político católico para elegerem senadores e deputados à constituinte a se reunir, a fim de na nova Constituição serem defendidos os direitos e prerrogativas da Igreja”, consagra Dom Eduardo Duarte Silva nas suas Passagens, Autobiografia de Dom Eduardo Duarte Silva, Bispo de Goyaz .

Já sob a égide do novo regime, surpreendemos, em 1891, já a reprimenda que o então aludido Bispo de Goiás faz a um padre, segundo registra as Passagens, Autobiografia de Dom Eduardo Duarte Silva, Bispo de Goyaz, na cidade goiana de Bela Vista, “onde também a hospedagem foi a melhor que tivemos: casa luxuosamente mobiliada, mesa farta e variada, criado trajado com toda a decência e moças servindo-nos à mesa”.  Dom Eduardo diz então “a um dos padres que se informasse de quem era aquela casa e que pessoal era o que nos estava servindo. Soube então que era o palacete do coronel Vicentão e que aquelas moças eram filhas do vigário”.

“Mandei que o chamassem, e, vindo ele, declarei-lhe que, se ali quisesse ficar com as filhas, que ficasse, indo eu para qualquer outra casa; se não quisesse, que fosse para a sua casa com a sua infeliz prole.” Muito magoado e chorando foi ter com um dos missionários e assim queixou-se:

“Que mal fiz eu a este bispo para separar-me assim de minha mulher e de minhas filhas.”

E Dom Eduardo arremata:

“Fiquei embasbacado à vista de tanta simplicidade e ignorância, para não usar de outro termo.”

Acreditamos ter faltado a Dom Eduardo um pouco de compreensão do momento histórico.

Ora o vigário de Bela Vista e sua prole não podiam pagar assim por séculos de permissividade da  lei civil.

As palavras da Historiadora do Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central – IPEHBC, Janira Sodré Miranda, sobre Dom Eduardo, expressas na orelha das mencionadas Passagens do Bispo de Goyaz, dão porém o verdadeiro tom ou espírito conservador dessa reação dele:

“Esta autobiografia traz a visão de um eclesiástico que esteve no centro do processo de romanização da Igreja Católica em Goiás e no Triângulo Mineiro, tendo testemunhado e militado contra a penetração e difusão das ideias liberais, da maçonaria, kardecismo e do protestantismo.”

A reação veemente de Dom Eduardo reflete um nítido anseio de mudança nas atitudes do clero da época, inclinada já ao espírito da República, tendente à romanização, melhor, a restaurar os direitos e prerrogativas da Igreja de Roma. Ou tendente ao sistema do Ultramontanismo: daqueles que são favoráveis à autoridade absoluta do Papa em matéria de fé e disciplina.

(Pedro Nolasco de Araujo, mestre pela PUC-Goiás em Gestão do Patrimônio Cultural, advogado, membro da Associação Goiana de Imprensa - AGI)

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