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OPINIÃO

Retrato de uma infância pobre

Morávamos em uma casa onde a ventilação tinha entrada, mas, tal como a vida do pobre, não tinha saída. Era o chamado barracão. Isto certamente não contribuiu para uma boa saúde, minha e dos meus irmãos.

A roupa que vestíamos, eu nem me lembro, mas me parece que a maioria das peças eram ganhadas.

E na hora de comer? Não faltava o arroz com feijão, graças a Deus! Mas a “mistura” era um ovo frito, partido ao meio. Bem que eu queria mais, porém a outra metade era do meu irmão mais velho. Carne, só em ocasiões especiais, e um pedacinho apenas para cada um.

Minha mãe, vez em quando, comprava uma dúzia de banana na frutaria do sr. Joaquim, na esquina. Haviam lá em casa seis meninos, eu e mais cinco. A banana que, por partilha, cabia a mim, depois de descascada, eu a tratava como se fosse um troféu. Ao invés de mordê-la e comê-la normalmente, eu ficava chupando-a e lambendo-a, como se fosse um picolé, para ela durar mais.

Aos domingos, tinha o refrigerante guaraná, sobre a mesa, na hora do almoço: uma garrafa. Mas era só um copinho de 100 ml para cada um. Também o bebia a prestação e devagarinho para não acabar logo. Cada gole: ô coisa divina! Era a bebida dos deuses!

Como criança é uma coisa maravilhosa, esses fatos não me deixavam triste, nem me faziam chorar. Acabada a refeição saia correndo, feliz, para brincar.

Tínhamos muitos brinquedos: Duas latinhas de salsicha, vazias, ligadas por um longo fio de barbante, era o nosso telefone. Eu numa ponta, de um lado da casa, meu irmão, em outra, do outro lado da casa, ficávamos ali, por um bom tempo, no quintal, conversando ao telefone.

Outras vezes, pegávamos várias folhas de jornal velho, amassava-as, de maneira bem compactadas, formando uma bola de papel. Colocávamos essa bola dentro de uma meia-calça, fina, transparente, aquela que as mulheres usam para ficar com as pernas mais bonitas. Estas eram dadas a nós pela nossa tia, quando ela não as usava mais, por estarem, já, muito desfiadas. Daí, então, empurrávamos a bola, meia adentro, até o pé da mesma. Em seguida, com uma das mãos, segurávamos o cano da meia, e, com a outra, girávamos a bola,  torcendo a meia sobre si mesma, junto à bola. Virávamos, pelo avesso, a porção restante da meia, e com ela tornávamos a vestir a bola. E, assim, íamos vestindo a mesma, camada sobre camada, até o consumo total de toda a extensão da meia. Depois dávamos alguns pontos com a agulha e linha que a “vó” nos emprestava, e estava pronta a nossa bola de futebol. Entenderam? Se não entenderam depois eu mando o vídeo explicando.

Daí, era “pum!” daqui, “pum!” de lá. Essa bola se chocava por diversas vezes contra as paredes da casa, na partida de futebol que travávamos, ferrenhamente, no quintal. Isto, somado aos gritos de goool! e às discussões sobre as jogadas, levavam os adultos à loucura.

– Vão brincar com essa bola prá lá, pelo amor de Deus! – gritava sempre alguém de dentro da casa.

Isso fazia acabar a brincadeira.

– De que vamos brincar agora?

– De pega-pega!

– Não, faz muito barulho. A “vó” não gosta.

– Então vamos brincar de amarelinha.

– Não amarelinha é brinquedo de menina. Quero brincar de Tarzan.

– Então vamos.

– Mas, eu sou o Tarzan e você é a macaca Chita.

– Mas eu queria ser o Tarzan.

– Não, você é muito pequeno. Não sabe pular de um galho no outro.

– Mas você também não sabe.

Enfim, subíamos os dois na goiabeira. Lá nos galhos mais altos víamos algumas goiabas maduras que do chão não eram vistas por estarem encobertas pelas folhas. Começávamos a comer goiabas. Esquecíamos da brincadeira de Tarzan.

E assim passávamos o dia até chegar a hora de ir para a escola: Escola Pública Municipal. Ô martírio, era ir para a escola! Mas eu só tirava nota 8 ou 9. Meu irmão tirava sempre 3 ou 4. Coitado, não conseguia entender nada que a professora explicava. Mas ele tinha outros dotes que eu não possuía. Por exemplo, ele sabia dar salto mortal. Eu tinha medo de fazê-lo. Para atirar pedras ele tinha muito mais pontaria do que eu. Ele sabia assoviar. Eu fazia bico, assoprava e não saia nada.

Quando chovia, alguns poucos meninos iam para a escola de carro. Nós íamos de guarda-chuva. Chegávamos com os pés encharcados.

Por falar em pés, nossos calçados não eram sapatos. Eram sandálias, chamadas “sandálias de pneu”. Sim, porque as tirar eram de couro, mas o solado era de pneu de caminhão, com todos aqueles sulcos e frisos grosseiros. Era uma sandália espessa e pesada, porém, por um lado, era bom, porque, quando algum menino nos empurrava, não derrapávamos com facilidade. Quando uma das tira se soltava, era só levar ao sapateiro, e ele batia lá um preguinho e, pronto, dava para ir usando por mais um bom tempo.

Ir ao barbeiro? Só quando estivesse bem cabeludo, com o cabelo montando às orelhas. Sentado na cadeira de barbeiro, meu pai, em pé, ao lado, determinava:

- Pode raspar a cabeça dele. Assim o cabelo demora mais para crescer.

Lá ia o barbeiro, então, deslizando a máquina, sem dó, sobre o meu couro cabeludo, abrindo estradas na minha floresta capilar, jogando tufos de cabelo pelo chão, até deixar-me totalmente careca.

À noite não era muito bom, não! A janta era pouca e fraca. Na hora de dormir, invariavelmente, a gente estava com fome.

Fuçávamos, como ratos esfomeados, todas as prateleiras e armários da cozinha à procura de alimento, e não encontrávamos nada. Sabíamos que dentro de um dos armários havia uma metade de um filãozinho de pão, mas estava guardado a chaves. Era para se comer na manhã do dia seguinte, acompanhado de uma xícara de café puro e transparente. O jeito era encher a boca de açúcar e ir para a cama dormir.

Dona Dilma, senhores senadores, senhores deputados e, até mesmo senhores ministros: é assim que vivem, até os dias de hoje, os nossos meninos e meninas, cujos pais ganham o salário mínimo. Apenas mudaram os brinquedos.

Que tal forçarem um pouco mais ainda os seus cérebros e fazerem “uma jogada de mestre” na administração das finanças do país, usando alguma nova estratégia que permita dobrar o salário mínimo, sem que os preços, dos produtos e dos serviços, sejam majorados, e sem, também, “quebrar” a Previdência?

Que tal imaginar seus filhos e seus netos vivendo como essas crianças pobres, para ver se desperta em vós uma maior sensibilidade social?

Que tal se lembrar dos grandes homens do passado, na História do Brasil, para ver se aumenta um pouco mais em vós o patriotismo?

Não podemos nos esquecer que:

As Crianças de Hoje Serão o Brasil de Amanhã!

(José Maria Moreno, odontólogo aposentado - E-mail: [email protected])

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