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OPINIÃO

Trocando de lugar

Estava de carona com seu mestre de obras, pois o seu SUV estava na oficina. Foram ao shopping comprar o resto do material de construção para sua nova casa. Morava em um amplo apartamento em frente um parque de sua cidade. Mas resolvera ir morar num condomínio fechado, a maioria dos seus amigos já mudara. Teria uma piscina, um jardim e um belo cão. Só não sabia que horas ficaria em casa, pois trabalhava o dia inteiro. Além das viagens.

Passearam um pouco, já que o mestre estava reformando sua própria casa. Morava longe. Era do lado do condomínio. Após a escolha das tintas ele teve um mal súbito. Chamou o SAMU e foi atendido às pressas e só pediu para avisar a família. O empresário ficou com as chaves do carro cinza, ou prata ou branco, nem lembrava qual. E por telefone já sabia que seu funcionário fora internado e era só uma angina.

Decidiu ir com o carro emprestado, explicar a família. Sua filha não o receberia para o almoço, pois estava morando com um rapaz que conhecera em uma viagem nos EUA. Ela não sabia cozinhar, aliás, ela não sabia fazer nada, há quatro anos estava estudando para concurso e o pai sustentava ambos. Brincavam de casinha.

Sua esposa também não poderia contar com ela. Sempre com as amigas, ou na academia. Ainda era bonita, mas cada centímetro de gordura corporal que perdia parecia ganhar em gordura cerebral. Esses pensamentos o irritavam. Estava insatisfeito. Até o cachorro da casa o incomodava, um bicho peludo, cheiroso e cheio de enfeites. Nem de longe parecia o seu Rex de infância que abanava o rabo e corria sujo de terra pela varanda para recebê-lo.

Demorou a achar o carro, todos do estacionamento eram iguais. Estratificados por marca e valor, mas não pela cor. Também errou o caminho, não tinha GPS. Mas quando a porta da casa do adoentado se abriu, um sorriso imenso abriu-se a sua frente. Era o filho dele. Estudava a noite e trabalhava de dia. Menino bonito e educado. Lembrou-se do seu filho, dos gastos com clínicas, internação, e da surpresa que teve ao saber que ele havia gasto a matrícula da Faculdade com o vício.

O cheiro do almoço invadia o ar. Arroz com pequi. Seu prato preferido que ninguém nem sabia. E, além disso, frango caipira. A senhora trouxe-lhe uma limonada suíça, delícia. Bebeu de gute-gute, tinha sede e estava ansioso. O som tocava discoteque dos anos setenta e depois a dona da casa colocou Rita Lee. Relaxou.

Um cachorro apareceu do nada, cheirou e lambeu sua mão meio untada de galinha. Deu o osso da coxa para ele roer. Vira lata não engasga com osso de frango, sempre soube disso. Sem querer soltou um arroto e todo mundo riu. Riu também, como há muito não o fazia.

A sobremesa era um mousse de chocolate com bananas, a menina mais moça fez correndo para agradá-lo. Ele sem cerimônia comeu praticamente a metade. Até aquele momento não teve coragem de dizer que o pai de família estava internado. A conversa fluía, sobre futebol, sobre namorado, sobre cinema, até sobre os Bee Gees – que sempre gostou mais do que rock – estava boa demais.

Foi convidado para deitar no quarto do rapaz e este ligou o ventilador, fazia calor. Dormiu quase três horas seguidas, nem de noite conseguia fazê-lo, e acordou outro.

Ligou para o hospital, o mestre estava de alta, iria buscá-lo.

Fingiu que estava preocupadíssimo e que ele antes de desmaiar pedira para cuidar da sua família. Pagou o resto da Faculdade do menino, matriculou a menina na aula de inglês e para a senhora nem teve coragem de agradecer o bem que ela lhe fez.

Em casa chegando levou o cão para o parque e rolou no chão com ele. O animal gostou. Ligou para a filha e pediu que viesse para sua casa e que não poderia pagar mais nada, pois estava seriamente endividado. Buscou o filho pela primeira vez na consulta e veio conversando de tudo, menos da adição. E a esposa? Essa ele olhou bem nos seus olhos e disse que seu presente hoje era ser mais presente. E só.

Não sei o que está acontecendo agora, mas cada um faz suas escolhas de vida. Esposa e filhos também. Ele já o fez. Tentaria reconquistar a todos, e mais ainda a si mesmo. Sem deixar agora de almoçar na casa do seu amigo, toda sexta-feira...

JB Alencastro é médico e escritor)

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