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OPINIÃO

A arte-educação em rizoma do “Ciranda da Arte”

No introdução de “Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2”, Gilles Deleuze e Félix Guattari apresentam a conceituação de um modelo descritivo na teoria do conhecimento a que denominam de “rizoma”, e que é imediatamente aplicado na sequência da obra. Dividida em cinco volumes na edição brasileira, a produção dos teóricos franceses tratará de outros 14 temas diversos sob a perspectiva rizomática. O rizoma é uma metáfora tomada de empréstimo à botânica, que na obra desses pensadores ampliará o leque que é oferecido pela tradicional metaforização da árvore como tronco hierárquico de que defluem os galhos do conhecimento em geral. Por maior que seja o conjunto arborescente, jamais ele alcançará a extensão que pode ser conseguida pelo rizoma, cuja estrutura se espraia amplamente, de forma horizontal, sob e acima do chão, não priorizando a hierarquia como as árvores.

Deleuze e Guattari apresentam o rizoma como sendo estruturado em seis princípios norteadores de sua definição. O primeiro e o segundo deles, princípios de conexão e de heterogeneidade, estabelece que um rizoma pode e deve ser conectado a qualquer outro rizoma. Esta conectividade se estabelece por meio de hastes, como na própria estrutura botânica que se cristalizará em bulbos e tubérculos, segundo os autores. Transpostos os princípios para o campo educacional, cada disciplina oferecida em uma grade curricular poderá ser caracterizada como um rizoma particularizado que se conecta a outras. A relação entre elas, denominada de transdisciplinaridade, caracterizará, portanto, a aplicação dos princípios rizomáticos do discurso de Gilles Deleuze e Félix Guattari.

O modelo pedagógico adotado pelo Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte, da Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte do Estado de Goiás apresenta características de rizoma bastante significativas. A sua matriz curricular contempla a arte-educação goiana em suas expressões de Artes Visuais, Dança, Teatro e Música. Cada uma dessas manifestações artísticas estabelece ligações com os rizomas “sujeito” e “cultura”, que definem o universo em que o educando se encontra imerso. A ligação entre os rizomas pelos princípios de heterogeneidade e conexão se dá pelo que os dois teóricos franceses chamam de “hastes rizomáticas”. Assim, por exemplo, Artes Visuais, sujeito e cultura representam rizomas que se ligam a outras expressões rizomáticas disciplinares como “conceitos artísticos”, “eixos-temáticos” e “modalidades”, que são trabalhados nas séries da educação básica que precede a entrada do educando no ensino superior.

Disposto graficamente em um disco elíptico do Caderno 5 do Ciranda da Arte, que contempla as fases educacionais da arte-educação a que o aluno é apresentado, o modelo pedagógico rompe com a estrutura arborescente hierarquizada do conhecimento, criticada por Deleuze e Guattari, o que possibilita que a aprendizagem arte-educacional do aluno goiano não sofra solução de continuidade, quando por motivos de força maior ele venha a desligar-se de uma unidade escolar, matriculando-se em outra da mesma rede. Em seu eixo temático, por exemplo, a programação pedagógica do primeiro ao nono ano contempla o desenvolvimento estudantil na subsequência: eu; o outro; localidade; sociedade; identidade; lugares; trajetos; posicionamentos e projetos, que são trabalhados em cada ano da formação fundamental.

A árvore se faz rizoma

Em “Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia 2”, Gilles Deleuze e Félix Guattari apresentam o conceito do rizoma na teoria do conhecimento de forma detalhada, contrapondo-o ao modelo arbóreo. No entanto, a certa altura, afirmam que a própria árvore poderá constituir-se até certo ponto em rizoma. A literatura, pensada em sua expressão mais simples de arte da palavra, oferece instigante contributo para a compreensão do pensamento dos autores franceses no poema “Árvore”, de Manoel de Barros. Conhecido como o poeta das coisas simples, escreve ele neste poema exemplar de sua poética:

“Um passarinho pediu a meu irmão para ser sua árvore./Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho./No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de/sol, de céu e de lua mais do que na escola./No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu para santo/mais do que os padres lhes ensinavam no internato./Aprendeu com a natureza o perfume de Deus./Seu olho no estágio de ser árvore aprendeu melhor o azul./E descobriu que uma casca vazia de cigarra esquecida/no tronco das árvores só serve pra poesia./No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as árvores são vaidosas./Que justamente aquela árvore na qual meu irmão se transformara,/envaidecia-se quando era nomeada para o entardecer dos pássaros/E tinha ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos brejos./Meu irmão agradecia a Deus aquela permanência em árvore/porque fez amizade com muitas borboletas.”

A representação que o poema de Manoel de Barros apresenta é a da transposição do sentido imagético próprio da árvore para o sentido figurado, facilitador da apreensão sensória do mundo, e que descreve um processo de educação natural. Nessa apresentação poética, a árvore passa a assumir a natureza do rizoma, conforme se depreende dos escritos e das terminologias de Deleuze e Guattari, pois desterritorializa o seu sentido próprio, reterritorializando-o numa espécie de antiprosopopeia. Em termos mais simples, o poema faz o caminho inverso da personificação (prosopopeia), quando poeticamente os objetos e os seres inanimados assumem características humanas. Esse deslocamento do sentido próprio configura um exemplo, ainda que singelo, de como a árvore pode assumir caracteres de rizoma.

Projetado, por exemplo, sobre os eixos temáticos trabalhados nas séries estudantis (eu; o outro; localidade; sociedade; identidade; lugares; trajetos; posicionamentos e projetos), o poema “Árvore” permitirá que cada série possa trabalhar todas as dimensões poéticas do texto de Manoel de Barros, priorizando, no entanto, aquela que for a mais compatível com a série do educando. Como o poema barrosiano, todas as demais modalidades de conteúdo em suas respectivas áreas artísticas, outros tantos rizomas, apresentarão articulações semelhantes na execução do projeto arte-educacional do Ciranda da Arte sob uma perspectiva rizomática, sinérgica e não necessariamente hierarquizada do conhecimento. Ao longo dos anos, essa perspectiva pedagógica rizomática tem se mostrado eficaz no processo formativo da arte-educação em Goiás, conforme se pode observar no histórico do Ciranda da Arte.

(Gismair Martins Teixeira, doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás, professor do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte, da Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte de Goiás)

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