Home / Opinião

OPINIÃO

Cícero: de orador em Roma a guru do Sebrae

Há nomes que sugerem notoriedade, como por exemplo, Cícero, que lembra o célebre orador latino (106 a 43 a.C.), que se destacou em Roma antiga por sua eloquência forense e sobretudo quando se insurgiu no Senado romano contra a conspiração urdida por Catilina, pronunciando suas famosas Catilinariae Orationes e assim tornando-se reconhecido como salvador da república. A história parece repetir-se, sobretudo quando vemos agora grassar a corrupção no Parlamento brasileiro e então ouvimos o eco das palavras do célebre orador romano: “Oh tempora! Oh mores!” (Ó tempos! Ó costumes!).

Essa impressão eu tive ao ouvir pela primeira vez o conferencista cearense, Cícero Sousa (foto), advogado e orador espírita, em recente palestra proferida na Irradiação Espírita de Goiânia, sobretudo quando se reportou aos tempos de sua formação jesuítica em Roma e traçou o panorama de sua experiência existencial e espiritual, agora com a missão assumida de iluminar a alma do povo. O título da palestra era, a propósito, “Alumeie”. Com diferença que o Cícero cearense (ao contrário do legendário padre Cícero de Juazeiro), não se interessa por política partidária e revelou-me que, embora convidado, jamais se dispôs a falar na Câmara dos deputados, porque ali eles mal ouvem a si mesmos e são cegos e surdos aos clamores do povo.

Cícero Sousa hoje presta serviços ao Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micros e Pequenas Empresas) na condição de consultor e tutor (ou coordenador) do Projeto DET (Desenvolvimento Econômico Territorial). O trabalho que vem desenvolvendo em Goiás, como já o fez em outros estados, consiste no esforço de agregar em torno do Sebrae, entidades empresariais de classe, bancos oficiais, cooperativas, agências de desenvolvimento regional e até universidades, formando redes de cooperação entre a administração pública e a iniciativa privada, não agindo de cima para baixo, mas de baixo para cima, dialogando com as comunidades locais, a partir da mobilização dos pequenos produtores. O Projeto DET vem operando em Goiás nas regiões Oeste, Norte, Noroeste e Entorno de Brasília. E seu coordenador, Cícero de Sousa, desde agosto de 2015 já visitou todas essas regiões, que, segundo observa, destacam-se por diferenças impactantes.

Diferenças regionais

O nordeste goiano, que tem por cidades-polo, Posse e Campos Belos, ao olhar de Cícero, é a região mais rica em recursos naturais e a menos desenvolvida do ponto de vista socioeconômico.

O norte, que tem por cidades-polo Uruaçu e Porangatu, é a região que melhor vem correspondendo às intervenções do Sebrae, até porque conta com grandes empreendimentos ligados inclusive a projetos de empresas multinacionais, principalmente no setor de mineração.

O oeste goiano, tendo por cidade-polo São Luís de Montes Belos que abriga uma gerência regional, destaca-se pela agropecuária e pela presença de pequenas indústrias de confecções.

A região noroeste, que tem Goianésia como sede de uma gerência regional que se estende ao município de Jaraguá, é o maior centro de confecções do Estado de Goiás.

Já o entorno de Brasília, que se caracteriza pela densidade populacional das cidades circunvizinhas, tem por principal foco as atividades de comércio e serviços,  sendo que as cidades-dormitório da circunvizinhança funcionam como fornecedoras de mão-de-obra à Capital federal.

A principal preocupação do Sebrae nesta primeira etapa do Projeto DET, segundo Cícero, é fortalecer os pequenos negócios no sentido de aí reter a renda produzida e agregar valor à produção local. O projeto está previsto para durar até 2017 com recursos do Sebrae nacional, que nesta primeira fase já conseguiu envolver a sociedade civil numa rede de cooperação com o poder público.

O guru do SEBRAE

O doutor Cícero, com seus dotes de orador (reencarnação romana?) e palestrante espírita, tornou-se uma espécie de guru do Sebrae, que em 1991 o descobriu no estado do Ceará, quando ali compareceu na condição de secretário do governo de Pernambuco (gestão de Joaquim Francisco), para acompanhar um encontro promovido em Fortaleza, com empresários e investidores que se mobilizavam para participar de ações do governo cearense. Apesar de suas constantes incursões na Europa, eis que viveu e estudou em centros cosmopolitas como Paris e Roma, o nobre cearense Cícero Sousa sempre acompanhou o processo de desenvolvimento de seu estado natal, que vê como um dos mais criativos estados nordestinos.

Naquele encontro Cícero chegou à seguinte conclusão. O poder público pode, mas não pode tudo. A sociedade civil sabe, mas não sabe tudo. Era preciso somar esforços e então todos se movimentaram no sentido de criar, como de fato criaram um pacto de cooperação entre governo e empresários, admitindo-se que o estado poderia ser administrado na forma de uma grande empresa pública. O pacto cooperativo vingou e o estado do Ceará entrou numa fase de prosperidade servindo de modelo para outras unidades federativas que adotaram a mesma política participativa.

Mais tarde, já como secretário Municipal de Juazeiro do Norte (1993-96), Cícero Sousa pensou também num pacto regional de desenvolvimento integrado da região do Cariri, à época uma das mais pobres do sertão cearense, tal como o nosso nordeste goiano, que era aqui estigmatizado como corredor da miséria. A questão seria descentralizar a administração pública da capital (lá Fortaleza, como aqui Goiânia), mediante um plano de desenvolvimento regional. E assim foi feito.

A história é longa e, na explanação do doutor Cícero (já agora falando como tutor do Sebrae em Goiás), o que chama mais a atenção é a sua maneira de contar a história, que reflete sua maneira de dialogar com o povo, com a técnica do sim e do não, onde não cabe a palavra talvez.

A técnica do sim e do não

Primeiro, uma pergunta (lá como aqui). De quem é esta região? É do governo? Não. É de Deus? Não. De quem é? É do povo? Sim. Então esta região é nossa. Sendo assim, paremos de reclamar de Deus pelo fato de que aqui não chove, e paremos de reclamar do governo, que “não chove nem molha”. O povo pode construir seu próprio destino quando se liberta da dependência governamental. Assim nasceu a ideia (lá como aqui) de que o pacto regional pode abranger todos os setores produtivos e não só os projetos dos grandes empresários. Quando a ideia pega, a notícia se espalha, o diálogo se estabelece efetivamente entre os agentes políticos e os representantes da comunidade: eis o que se chama pacto de cooperação.

O papel do guru é conscientizar o povo de sua capacidade própria de criar soluções. Pobreza não existe só por falta de recursos financeiros, tecnológicos ou naturais. Pobreza é causada, sobretudo por questões culturais. As pessoas nascem e crescem admitindo ser pobres e nada fazem para mudar essa fatalidade. Como diria o poeta português, Bulhões Pato: “Ribeiros correm aos rios, os rios correm ao mar. São tudo leis deste mundo, que ninguém pode atalhar. Quem nasce para ser pobre, não lhe vale trabalhar.”

Cícero reage a esse fatalismo, contando histórias que refletem experiências construtivas que levantam a autoestima das pessoas, mostrando exemplos de como devem reagir às situações adversas. Aqui entra novamente a sua técnica de dialogar. – Alguém aqui já levou uma carreira de boi? Sim ou não? Alguém responde: – Sim. – Então, se você já levou uma carreira de boi e se já saltou na altura de uma vara de dois metros, então você é capaz de saltar adiante na vida e sair de situações menos difíceis do que essa. E deduz que todos se enquadram na condição de saltar adiante na vida, quando acreditam em si mesmos.

Cícero sabe levantar as expectativas da plateia, contando histórias em forma de parábolas das quais extrai lições de vida. Certa vez saiu viajando pelo Nordeste afora e, logo na entrada da cidadezinha de Monteiro, viu um monumento erguido em homenagem ao poeta popular da cidade, onde leu a curiosa inscrição: “Poeta é aquele que tira de onde não tem para botar onde não cabe.” Com a risada da plateia, Cícero conclui: – Vocês têm que fazer como o poeta: tirar de vocês mesmos e botar onde parece que não cabe. Interessante é que o povo entende o que Cícero cearense fala, seja no Nordeste como em Goiás (em Posse ou em Nova Roma), assim como o Cícero romano falava e era entendido pela classe dos plebeus na Roma antiga. Como é que esse povo, que tem tal sensibilidade, essa inteligência emocional, esse senso artístico, não é um povo civilizado? Ora, se é um povo civilizado, por que não utilizar seu potencial, mesmo no contexto da cultura popular?

No nordeste goiano

Observei que Cícero consegue convencer as pessoas de que uma terra não é estéril quando elas têm a mente fértil. Mas como faz para ensinar que uma terra é fértil quando as pessoas têm a mente estéril? A resposta é positiva: “Mexendo no brio delas. Toda pessoa tem seu orgulho, mormente aquela que tem a mente menos fértil. Geralmente a pessoa mais orgulhosa pensa que vale mais do que as outras, então acha que todo mundo é responsável por ela, menos ela própria, inclusive Deus.”

Às vezes é preciso mexer com o brio dessa gente – enfatiza Cícero.    – Como? Dando exemplos de como as pessoas de outros lugares reagem a situações mais adversas do que as delas. Mostrar, por exemplo, como aqui no cerrado goiano, há uma abundância de produção natural de pequizeiro e cajueiro nativos, prodigalizando seus frutos. Mostrar que cabe a essas pessoas, pelo menos colher o caju ou descascar o pequi para usufruírem daquilo que a natureza lhes oferece. Mostrar que há lugares piores onde as pessoas não têm outra alternativa, ou cultivam a terra e produzem o que comer, ou morrem de fome. Deus deu a vida, criou a natureza, mas as criaturas hão de produzir seus próprios alimentos com o suor de seus rostos. (Essas palavras aqui alinhadas na forma de discurso indireto livre foram extraídas de uma entrevista com Cícero, acompanhando-o em uma de suas andanças no município de Posse).

E assim prossegue com a sua técnica de contar dessas histórias de vida, dar exemplos construtivos e concluir com a sua lógica do sim e do não, como na maiêutica de Sócrates, em que, dialogando com o povo, convence-o na base de perguntas e respostas. Cada história gera uma provocação do tipo: – Ninguém aqui é mendigo. É mendigo? Não. Pode até não ter as duas pernas e os dois braços, mas mendigo não é. Todos aqui têm uma mente sadia, não têm? Sim. Pois então vocês têm uma mente que é fértil, capaz de pensar e resolver seus problemas. Pergunta-se: Deus deu mais inteligência aos alemães? Não. Deus deu mais sabedoria aos japoneses? Não. No entanto, a Alemanha e o Japão, não são hoje potências mundiais? Sim. Mesmo tendo sofrido guerras, terremotos e até bomba atômica, pois não é? E assim arremata: “Nós somos um povo privilegiado, temos um país privilegiado. Goiás, coração do Brasil, é um estado privilegiado. Aqui há rios caudalosos, têm até nomes românticos: Rio Vermelho, Rio Verde, Rio das Almas.”

Nessa tônica, o orador já prepara sua peroração: “Passarinho recebe de graça as coisas de Deus? Não. Mas o Pai Celestial se preocupa com eles? Sim. Os passarinhos buscam longe os gravetos para fazer os seus ninhos e nunca vão à prefeitura pedir ao prefeito um ninho popular: eles o constroem como nem a ciência faz igual. A ciência pode até inventar um ninho colorido, de plástico, mas nunca igual ao ninho que só o passarinho sabe construir. Basta olhar em derredor e ver que todos os entes da natureza trabalham para sobreviver, desde as avezinhas que se alimentam das sementes caídas no chão, até os insetos que saem do chão também em busca da própria sobrevivência.”

As pessoas ouvem isso (palavras do Cícero), ficam silenciosas e depois se convencem de que têm mesmo que descruzar os braços. O homem do campo, que convive com a natureza e também acredita em Deus, precisa acreditar em si mesmo e ver que a pobreza material é antes de tudo uma pobreza mental. Dizendo essas coisas, o palestrante Cícero convence até as pedras a rolar dos morros, se necessário for, para o bem das comunidades assistidas pelo Sebrae.

(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa - E-mail: [email protected])

Leia também:

  

edição
do dia

Capa do dia

últimas
notícias

+ notícias