Home / Opinião

OPINIÃO

Conheci muito

Há muito que não se via tanto aguaceiro ensejando qualquer corguinho desobediente a transmudar-se em rio caudaloso se exibindo sinuoso, empanturrado e veloz com suas águas sorvendo vidas, esparramando aflição, derribando palhoças e fazendo lavouras se chafurdarem na lama.

O cavaleiro, debaixo duma capa “ideal”, trotava o cavalo e tinha ganas de chegar ao lugarejo e se aninhar no rabo do fogão como um gato ronronante e lá se aquecer com as mulatas da Fia Loura. Com os olhos murchos, seguia compassado, acicatando suavemente as ilhargas do rocim enquanto a chuva descascava os barrancos que desabavam aqui e alhures sob o efeito das águas caindo a cântaros. Noite pontual engoliu a luz do dia, acauã prenunciando mais chuva e as nuvens, bojudas, apagavam as luzinhas das estrelas sonolentas.

O cavaleiro, vindo num trote cadenciado, chega à currutela e atravessa o pontilhão do antes um rego d’água mequetrefe, virado uma correnteza medonha, arrastando moitas garranchentas e bacorinhos e pintinhos e uma grandeza de outros nascidos inda’gora.

“Vinde em Paz” dizia uma placa retangular, toda furada de bala, enfincada às margens da estrada estampando a cara e a chancela dos manda-chuvas locais com a respectiva logomarca dos seus importantes cargos civis, militares e eclesiásticos.

Chegando ao forrobodó da Fia Loura, o cavaleiro, depois de dar guarida à montaria, se acomodou num canto donde se abarcava todo o ambiente --- gato escaldado teme água fria, no beleléu estão aqueles que deixaram as costas livres pro mundo --- falou de si para si, o andarilho.

Fumaça revoluteando na luz baça, bodum se exalando e se misturando aos alaridos indecifráveis, tablado ressoando catiras, duplas e trios se revezando nas canções que falavam de cruéis abandonos e de conquistas malogradas davam a tônica naquele antro de alegria fugaz. De repente a escuridão toma conta do lugar só por que o Zé Cascai, faiscador de diamante, não achou lá muito legal o brilho do fifó e espatifou-o com um tiro de garrucha. Até que a luz fosse refeita, se viu gente pulando janela e se entalando na porta estreita, gente topando com gente, gritos, uivos, ofensas à masculinidade e feminilidade dalguns, mesas e cadeiras de pernas pro ar, um inferno. Das tantas gentes no local, um deles, ex-seminarista, desmaiou se mijando todo que foi preciso reanimá-lo à base dum troço alcanforado que a Fia Loura passava e repassava no seu nariz sob o comentário jocoso do Zé Cascai de que aquele bosta devia de usar vestido e anágua. De chofre, ordena a uma mucama, que teve a coragem de não fugir, pra trazer cachaça e sal e misturando com o cano da garrucha e ordenou ao andeiro que bebesse e o andeiro, gut-gut, bebeu tudo. Então este manda encher a mesma coisa no mesmo copo e, sacando duma peixeira de quatro dedos de lombo, mistura e manda o Zé beber tudo, tudinho. Formou-se uma platéia com os espectadores apostando quem ia comer o fígado de quem. O da garrucha se pavoneando de cabra macho filho de mulher de cabelo nas ventas e o zé mané que tretasse entrava na pêia. O da peixeira olhou na cara do Zé e num átimo se lembrou duma criaturinha que gostava de se intitular muié-macho ao faiscar fogo no cimento com uma lampiana desse tamanho, mas que era um ciclone, um tufão de fêmea que o enlouquecia e que há muito o abandonara entrando na boléia dum caminhão fênêmê, escafedendo-se no mundo. A parecença dele com ela fez-lhe perguntar ao Cascai: --- Meu prezado, tu, por acaso num é filho de Zefa Tufão? Heim? Conheci muito a senhora sua mãe...

Trovão roncou raivoso. Saracura Três Potes chama chuva.

Chuva desaba e chove... chove... chove...

(Alcivando Lima, escritor - [email protected])

Leia também:

  

edição
do dia

Capa do dia

últimas
notícias

+ notícias