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OPINIÃO

Joana de Ângelis, o imaginário espírita

Em um colossal tratado acerca do imaginário, intitulado de “As estruturas antropológicas do imaginário”, o pesquisador francês Gilbert Durand define a matéria em termos que vão muito além dos verbetes dicionarizados que pretendem dar conta de sua definição. Para Durand, o imaginário é “o conjunto das relações de imagens que constituem o capital pensado do homo-sapiens”. Apesar da economia de palavras – comum em uma definição –, o enunciado se revela de uma vastidão incomensurável, articulando-se e dialogando com as mais diversas estruturas culturais da humanidade e seus respectivos paradigmas.

No âmbito da linguagem, uma das maneiras de o imaginário estabelecer-se de forma mais precisa, em sua característica fundamental de “relações de imagens”, é através do conceito de intertextualidade, que é apresentado pela pesquisadora em semiologia e literatura, Julia Kristeva, em sua obra “Introdução à semanálise”, nestes termos: “(...) todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. Assim, em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade (....)”. Em outras palavras, a intertextualidade é a relação explícita ou implícita entre os textos de quaisquer natureza. Imaginário e intertextualidade funcionam, pois, como conceitos demolidores de preconceitos,, permitindo que se possa analisar, do ponto de vista cultural, os mais variados temas.

No livro “Manuel Bandeira: alguns poemas traduzidos”, publicado pela José Olympio Editora, o leitor tem diante de si uma demonstração da elasticidade e da articulação possíveis entre os conceitos de imaginário e intertextualidade. Nessa obra, o icônico poeta Manuel Bandeira exercita a sua verve literária numa das mais difíceis realizações da poética: a tradução. A apresentação realizada por Leonardo Fróes dimensiona o quão difícil é verter um poema de uma língua a outra, o que demonstra que Jeová, o deus bíblico, não estava de brincadeira quando misturou as línguas na torre de Babel, conforme pilheriou José Saramago em seu último romance, Caim, ao intertextualizar o episódio da confusão das línguas.

Manuel Bandeira, poeta do modernismo brasileiro, traduziu nesse esforço literário autores clássicos, de línguas, épocas e locais diversos. Nomes como Goethe, Baudelaire, Emily Dickson, Verlaine, Hölderling, entre outros, são apresentados ao leitor em poemas curtos, mas poeticamente densos. Dentre os poemas traduzidos ao português por Bandeira, dois são particularmente caros ao imaginário do espiritismo sistematizado por Allan Kardec na segunda metade do século 19. Às páginas 48 e 54 de “Manuel Bandeira: alguns poemas traduzidos” estão, respectivamente, as poesias intituladas “Redondilhas” e “Acalanto para Deus menino”, de autoria de Juana Inés de la Cruz. Alguns versos deste último poema podem ser vistos, ainda, na contracapa da obra.

As três vidas Joana de  ngelis

Apesar de ser uma grande contribuição aos amantes da boa poesia, “Manuel Bandeira: alguns poemas traduzidos” apresenta um senão, que em tempos de Google não chega a ser um contratempo incontornável. Os editores parecem ter partido do pressuposto de que o leitor teria um razoável conhecimento biográfico acerca dos poetas. Assim, os poemas são apresentados sem maiores dados biográficos, fazendo valer a máxima de que os bardos “dispensam apresentação”, o que vale apenas para os especialistas da área. No âmbito do binômio imaginário-intertextualidade, porém, o site de busca da web será de fundamental importância, pois a autora dos poemas “Redondilhas” e “Acalanto para Deus menino”, Juana Inés de la Cruz, configura um exemplo instigante da articulação de ambos os conceitos.

Nascida em 12 de novembro de 1651, em San Miguel Nepantla, no México, Juana Inés de Asbaje y Ramírez de Santillana teve uma existência singular. De inteligência precoce, tornou-se freira mais pela sede de conhecimento do que por vocação religiosa, segundo seus biógrafos. Nessa condição, assume o título e o nome de Sóror Juana Inés de la Cruz. Produziu uma volumosa obra composta de poemas e dissertações filosóficas. Um dos muitos dados curiosos de sua vida é a grande atração que ela sentia pela língua portuguesa, o que pode ter contribuído para levá-la a uma polêmica intelectual com o grande nome do barroco luso-brasileiro, o padre Antônio Vieira.

O nome de Juana Inés de la Cruz está vinculado visceralmente ao movimento espírita brasileiro, através de um dos mais importantes nomes de sua história no Brasil, Divaldo Pereira Franco. Reencarnação, sobrevivência à morte corporal, comunicabilidade entre vivos e mortos através do fenômeno da mediunidade, compõem o conjunto de imagens e representações do imaginário espírita, conforme a definição de Gilbert Durand. Aceitá-lo ou não, pertence ao livre-arbítrio individual e inviolável de cada um. Ignorá-lo, porém, de forma liminar, pode representar uma canhestra obtusidade intelectual.

Divaldo Pereira Franco é um médium espírita que desde os cinco anos de idade trava relações com o mundo espiritual, conforme apontamentos biográficos, através do fenômeno estudado por Allan Kardec e por ele denominado de mediunidade, que seria, no caso, a capacidade de intercâmbio ostensivo com o mundo espiritual e sua população, tão ou mais diversa do que aquela que habita o plano da humanidade corporal. Idealizador e mantenedor de uma colossal obra de assitência social na cidade de Salvador, Bahia, Divaldo Franco já realizou mais de mil palestras em dezenas de países, sempre sob a influência dos espíritos que o assessoram na divulgação doutrinária. O médium baiano, que já recebeu títulos de Doutor Honoris Causa, já psicografou um número expressivo de espíritos, em dissertações de cunho filosófico, científico, religioso e literário.

À semelhança de Francisco Cândido Xavier, com o espírito Emmanuel, Franco conta em suas atividades espíritas com um espírito-guia de suas tarefas, uma espécie de coordenador das suas atividades de cunho doutrinário. Segundo informações suas, com o aprimoramento de sua mediunidade clarividente pôde distinguir no que inicialmente era percebido por ele como um foco de claridade, a forma de uma jovem freira, que se apresentou com o nome de Joana de  ngelis. Em viagem de conferências doutrinárias pelo México, Joana de  ngelis o levou à localidade de San Miguel Neplanta, mostrando-lhe onde havia nascido no século de ouro do barroco espanhol-mexicano, tendo vivido no México na personalidade da Sóror Juana Inés de la Cruz. Em outro momento, diria Joana de  ngelis ter vivido também na cidade de Salvador, sob a personalidade de Joana Angélica de Jesus, mártir de uma invasão de tropas portuguesas ao Convento da Lapa, em Salvador, em fevereiro de 1822.

Ambas as existências heroicas, tanto na vida intelectual quanto na vivência sadia dos princípios cristãos, foram embasadas por uma recuada existência homônima da entidade espiritual que se identifica como Joana de  ngelis. Consoante o Evangelho de Lucas, em seu capítulo oitavo, Jesus Cristo teve, além do grupo dos discípulos, um número de mulheres que o seguiam e o auxiliavam em sua missão espiritual no mundo. Narra o evangelista: “1. E aconteceu, depois disto, que andava de cidade em cidade, e de aldeia em aldeia, pregando e anunciando o evangelho do reino de Deus; e os doze iam com ele,/2 E algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual saíram sete demônios;/E Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, e Suzana, e muitas outras que o serviam com seus bens”.

Num lance de transcendência no tempo e no espaço, as últimas palavras do evangelista são de um alegorismo extraordinário no âmbito do imaginário espírita. As mulheres do evangelho serviam ao Cristo com seus bens. Joana, a esposa de Cuza, procurador de Herodes, terá como Juana de la Cruz uma existência intelectualmente rica; como Joana Angélica de Jesus, uma vida prática igualmente rica, coroada no martírio; em ambas as vidas, amealha bens para servir à mensagem de Jesus na construção de um mundo de paz mediante a obra assistencial de seu pupilo, o médium Divaldo Pereira Franco, que pôde ao longo de décadas cuidar de um número bastante expressivo de párias sociais e espirituais, mormente crianças, numa aplicação objetiva daquilo que o Cristo afirmava há praticamente dois milênios, conforme registrou São Mateus: “5 E qualquer que receber em meu nome um menino, tal como este, a mim me recebe”.

Assim, o imaginário e a intertextualidade abrem conexões para informes e considerações sui generis como as que relacionam a vida da poetisa Juana Inés de la Cruz e a mentora espiritual de Divaldo Franco, Joana de  ngelis. Conforme alguns estudiosos do fenômeno literário, a poesia funciona como uma espécie de profetismo, o que equivale a dizer que funciona como uma espécie de mediunidade. Em “Manuel Bandeira: Alguns Poemas Traduzidos”, o poeta-tradutor translitera ao português o poema “Anelo”, do genial escritor alemão Johann Von Goethe, que podem ser lidos tendo em vista a perspectiva das vidas extraordinárias de Joana de  ngelis, que tanto em sua existência como a esposa de Cuza quanto em sua etapa existencial no Convento da Lapa deu a vida pela causa crística, anelando a evolução espiritual contínua, objetivo maior da existência, conforme o imaginário espírita.

Escreveu Goethe, em “Anelo”: “Só aos sábios o reveles,/Pois o vulgo zomba logo:/Quero louvar o vivente/Que aspira à morte no fogo (....)//’Morre e transmuda-te’: enquanto/Não cumpres esse destino,/És sobre a terra sombria/Qual sombrio peregrino.//Como vem da cana o sumo/Que os paladares adoça,/Flua assim da minha pena,/Flua o amor o quanto possa!” Joana, esposa de Cuza, deu a vida física no circo romano, conforme informações mediúnicas através de Chico Xavier, cumprindo em suas outras vidas homônimas os anelos da evolução, culminando em uma obra social em parceria com Divaldo Franco representativa do amor cantado por Goethe.

(Gismair Martins Teixeira, doutor em Letras e Linguística; professor do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte, da Seduce-GO)

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